
Ana Maria Cemin – Jornalista
23/02/2024 – (54) 99133 7567
A psicopedagoga Joanita de Almeida, 55 anos, foi sozinha a Brasilia numa excursão que tinha por objetivo fazer turismo. Junto com o grupo de pessoas, que ela não conhecia, viajou e hospedou-se num hotel. De Juiz de Fora, MG, essa coordenadora pedagógica da Associação Adalberto Teixeira Fernandes Filho, onde trabalhou por 28 anos, estava exultante em visitar pela primeira vez a capital federal do seu País. E essa foi, aliás, a única motivação para a viagem.
Foi a última vez que Joanita exerceu o seu direito de ir e vir. Hoje, além de usar tornozeleira eletrônica e estar condenada a 16,5 anos pelo Superior Tribunal Federal, Joanita não tem mais condições de ficar sem acompanhamento 24 horas, porque nos dois meses que passou dentro da Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP) do Presídio Colmeia, foi fortemente humilhada e dopada durante todo o período. Isso desencadeou doenças mentais que ela não tinha.
Para se ter uma ideia, até ir a Brasília para um passeio, a única medicação que Joanita tomava era para o controle de epilepsia.
Porém, ao ser presa por estar dentro do Plenário do Senado, onde foi se abrigar de bombas e a convite dos policiais, essa mulher conheceu o inferno e me conta que perdeu totalmente a sua vida, a sua autonomia e pensa frequentemente em suicídio.

Desde que saiu do Colmeia, a sua única filha, Luanna, 28 anos, tem a curatela da mãe, por ela ser considerada incapaz de praticar atos da vida civil.
Luana controla as idas semanais ao psiquiatra e psicólogo, além das medicações para depressão, bipolaridade, epilepsia e transtorno alimentar. Ela foi a Brasília com 83 kg e voltou com 48 kg.
Todas as histórias que escrevo de 8 de Janeiro, desde os dias seguintes aos fatos, são uma alerta para a crise humanitária que o Brasil vive. Como jornalista tenho a obrigação de ouvir essas pessoas e narrar as suas histórias com delicadeza de alma. Elas não são as mesmas pessoas que foram a Brasília no ano passado, porque até então não tinham conhecido na pele e na mente a crueldade humana que faz sangrar sem piedade. O texto que segue é a narrativa da experiência de uma brasileira que nunca tinha ido a uma manifestação, que acreditava na justiça, e hoje aguarda ser recolhida para o presídio, em cumprimento à sentença proferida após o julgamento virtual de 15/12/2023 a 05/02/2024.

A rotina da psicopedagoga se dividia entre o seu trabalho como coordenadora pedagógica, durante os dois turnos, a filha e seus dois netos, de 5 e 12 anos, além do trabalho voluntário de entrega de quentinhas para a população de rua de Juiz de Fora. Muito ativa, Joanita não tinha muito tempo para parar e nem era o estilo dela.
De férias no início de janeiro de 2023, soube de uma excursão de turismo que iria para Brasília, entrou em contato, comprou as passagens.
Saíram no dia 6 e chegaram no dia 7 no hotel, onde os 50 excursionistas ficaram. Ela não conhecia ninguém, mas percebeu que cada um tinha um propósito e um destino na capital federal, para descobrir as maravilhas locais.


Ainda no dia 7, foi até o QG conhecer o mais famoso ponto de encontro dos conservadores. Ficou duas horas por lá e voltou no dia seguinte, por volta das 10h30.
Ela estava maravilhada com tudo, pois nunca tinha participado de uma manifestação.
No caminhão do som, alguém comunicava que teria uma marcha para a Praça dos Três Poderes. A orientação era de que todos chegassem lá e se sentassem no gramado. Todos ali pareciam calmos e tranquilos, então pensou na possibilidade de ir também.
Uma moradora de Brasília, com mais idade, conversou com ela e ofereceu carona até as proximidades da praça, pois seria o caminho de retorno para casa. Joanita aceitou e ficou numa rodoviária perto da Esplanada, onde almoçou.
Descendo em linha reta à Praça dos Três Poderes, caminhou muito vagarosamente para conhecer todo o entorno. A mineira Joanita seguia sozinha em direção à barreira militar, onde abriu sua bolsa e mostrou os seus pertences, cigarro, carteira chaves e outras coisas de uso pessoal.
Aproveitou para fazer fotos com os policiais e dos policiais, então seguiu para o local da manifestação. Quando chegasse em casa teria muito o que contar!
Em seu relato ela diz que deve ter sido uma das primeiras pessoas a chegar no local, pois tinha muito policial fortemente armado, com viaturas sobre o gramado, mas poucos manifestantes. Ela conversou com os policiais e se sentou em frente a uma barricada.
PESSOAS CHEGAM E POLICIAIS COMEÇAM A ATIRAR
O ambiente tranquilo e de paz mudou completamente com a chegada de mais patriotas. Conforme chegavam mais pessoas no local, o ataque da polícia se intensificava e todos corriam para se abrigar nos ministérios ou para além deles, em direção aos prédios dos Três Poderes.
A loucura era tanta que Joanita rolou gramado abaixo até chegar ao lado de um lago. Não subiu na rampa por medo dos helicópteros e suas bombas e tiros. Entrou num grande salão do Senado e correu para o banheiro para lavar o rosto que ardia pelo gás de pimenta. Lá dentro, os policiais do Senado estavam armados com metralhadoras que ela nem em filmes tinha visto, de tão enormes. Assustada, viu os policiais atirarem contra os vidros e esses descerem ao chão, em cacos.
Os policiais orientaram que seguissem para esquerda e ela foi. Chegou ao Plenário do Senado, que estava completamente intacto.
Lá dentro via as pessoas que oravam, sentadas ou deitadas. Ela se sentou numa cadeira e colocou o celular para carregar. O local parecia seguro, com pessoas normais.
No caminho até chegar ali tinha visto muitas pessoas vestidas de preto e com máscaras que tapavam todo o rosto.
17 HORAS NO SUBTERRÂNEO DO SENADO
Por 12 anos Joanita tomou regularmente o seu remédio para controlar a epilepsia, e tinha uma vida normal e produtiva.
Jamais imaginaria que ao passar as suas férias do trabalho em Brasília sofreria o que veio o seguir. Junto com as demais pessoas que estavam no Senado, ela foi conduzida pelos policiais para o estacionamento onde essas quase quarenta pessoas começaram a ser tratadas como criminosas.
Sem água, sem comida, sem banheiro. Assim ficaram, sentadas no chão, até que foram ouvidas pela polícia, assinaram papeis e foram conduzidas para os presídios de Brasília.
Após 15 dias dentro do presídio, sem medicação, Joanita começou a ter crises constantes de epilepsia, ocasião em que as próprias presas políticas eram obrigadas a fazer o socorro, pois não tinha atendimento especializado lá dentro. Joanita caia no chão, começava a se debater e as presas a viravam de lado para evitar que se sufocasse com a sua baba.
“Tive várias crises e ninguém do sistema penitenciário vinha em socorro. Não tinha equipe para isso. E eu estava tendo uma crise atrás da outra, chegando a ter três no mesmo dia”, relata a presa política.
Quando ela estava em crise, ela perdia a noção de tudo, porém as colegas de cela contavam o que acontecia, quando ela não era levada para uma cela de isolamento, onde ela era largada a sua própria sorte, sem nenhum atendimento.
“Algumas vezes as policiais penais pediam para que as presas me carregassem até perto da guarita onde elas ficavam de plantão e me largavam ali no chão. Apenas uma presa podia ficar comigo, evitando que eu me engasgasse. E nesse local elas tinham três cachorros que ficavam lambendo meu rosto enquanto eu estava desfalecida. As policiais riam.
Numa outra ocasião, as policiais orientaram uma das presas políticas a me dar um suquinho para acalmar, exatamente na hora em que eu estava em convulsão. Quase morri sufocada, mas não foi culpa da minha colega de cela”, relata.
PRIMEIROS TEMPOS SEM ACESSO À FAMÍLIA E ADVOGADOS
Quem acompanhou de perto os dias que se seguiram ao 8 de Janeiro sabe que poucas notícias vinham de dentro do presídio e, praticamente, os presos ficaram isolados por mais de duas semanas, com a sensação de que as pessoas tinham esquecido deles.
Era um contingente enorme de pessoas levadas ao cárcere, 1,5 mil, e a estrutura do Papuda e Colmeia não comportavam tal ação de aprisionamento dessa população, quanto mais organizar todos os trãmites para os advogados. Nada funcionava!
Sendo assim, a psicopedagoga permaneceu cerca de dois meses nesse sofrimento intenso, de crises, sem o devido atendimento e tratamento.
Numa noite, quando as policiais a levaram para uma cela para passar pela crise sozinha, ao lado de celas de presas comuns, Joanita teve uma crise grave de epilepsia e as presas comuns entraram e desespero, gritavam por socorro.
Foi só então, pela primeira vez, que veio um resgate médico (de fora) e a levaram para um hospital.
INÍCIO DE INFARTE
Naquele dia, a equipe de socorro algemou Joanita e a levou para o hospital mais próximo do Colmeia, onde ela ficou num quarto especial com escolta 24 horas. As convulsões continuaram dentro do hospital e ela estava algemada à cama.
“Depois disso consegui fazer os procedimentos para conseguir a minha medicação. Paguei psiquiatra particular, uma consulta on-line, e minha filha Luanna viajou 18 horas desde Juiz de Fora trazendo a medicação. Nós já estávamos no terceiro mês”, relata.
O sistema prisional não tinha psiquiatra para atender Joanita na cela onde ela ficava com as demais presas políticas, e a cada dia era uma pressão psicológica diferente, com procedimentos de presídio que são agressivos para uma pessoa que nunca cometeu crime, que não é desse mundo. Por isso, mesmo tomando a medicação, as crises de epolepsia continuavam. Ali dentro não era possível fazer o controle da dosagem, espaçamento do tempo de administração das doses da medicação.
VISITA AO INFERNO
O quadro de saúde de Joanita era bastante instável e a permanência dela dentro do hospital foi apenas de dois dias. A saúde se agravava e a solução encontrada pela direção do Colmeia foi transferir a presa política para a Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP).
“Em junho eu conheci o inferno quando fui levada para a ATP. Eu não sabia para onde me levariam naquele dia em que três policiais apareceram na cela e pediram para que pegasse todas as minhas coisas. E diziam para levar somente o que eu conseguisse carregar, pois apenas me escoltariam. Abri um lençol e coloquei todas as minhas coisas dentro. Ao chegarmos nessa ala psiquiátrica, as três mandaram eu me despir para a revista e pediram para abrir a minha trouxa feita com lençol. Elas roubaram tudo o que eu tinha: toalha de banho, muda de roupa, calcinha e tudo mais. Riam de mim e diziam que era coisa demais para uma presa. Fui para a cela só com a roupa do corpo”, relata.
Sem outra peça de roupa, sem toalha, Joanita começou a tomar banho e secar-se com a própria roupa que em seguida vestia. Assim ficou até que a sua advogada descobrisse que ela já não estava mais junto com as demais presas políticas, mas, sim, na ATP.
Nos primeiros 15 dias, Joanita dividiu cela com uma presa que era policial e que estava temporariamente detida ali. Com as demais presas ela só convivia quando ia para o banho de sol diário de duas horas.
EM DOIS MESES, FOI DE 83 KG PARA 48 KG
A comida era azeda e cheia de bicho. Se reclamasse, recolhiam e não traziam uma marmita em substituição. Aos poucos a situação foi ficando tão grave que Joanita comia somente o que a filha trazia nas visitas quinzenais: três maçãs, três bananas e três goiabas. A perda de peso chegou a 35 kg dentro do ATP, caindo de 83 para 48kg.
“Minha imunidade era tão baixa que até mesmo um tomate machucava a minha boca pela acidez. Mas o que estava ruim ainda poderia ficar pior. Os advogados nos visitavam no andar de cima do prédio e tínhamos que passar por uma escada em caracol para chegar no local. Essa escada tinha um piso escorregadio. Nossas reuniões com advogados, fossem virtuais ou presenciais, eram sempre nesse local. Num desses dias, a policial Débora, conhecida por ser rude com as patriotas e que foi transferida para a ATP, me fez entrar num banheiro cuja porta permaneceu aberta e me fez ficar nua. Policiais masculinos e presos com doença mental passavam por ali e me olhavam, enquanto a policial Débora se divertia com a cena de humilhação”, conta.
EMPURRADA ESCADA ABAIXO
“Toda vez que eu ia para a conversa com o advogado eu era escoltada e algemada. Numa delas, a policial Débora deveria estar com um péssimo humor porque depois de ter me acompanhado, ao voltar para a escada caracol, ela me empurrou e eu fui rolando até chegar lá embaixo. Fiz 18 pontos na cabeça”, relata.
Cair na escada com piso escorregadiço aconteceu mais uma vez, porém dessa vez foi em função da forte medicação que a presa tomava. A segunda queda também resultou em pontos e só não foi mais grave porque a Joanita não estava algemada.
“Eu estava sempre dopada com remédios e até mesmo dentro da cela me acidentei. No último mês de presídio, fiquei sozinha na cela, e ao tomar banho me organizei para lavar o cabelo e passar creme, mas ao enxaguar não queria que caísse no piso para não ficar escorregadiço. Levei ao banho um pequeno balde, deixei do lado para que a água com creme escorresse ali e deu tudo errado: escorreguei e cai de cabeça dentro do balde. Eu não conseguia mais tirar o balde da minha cabeça! Fui salva por uma classificada que passava por ali e, vendo a situação abriu o cadeado, tirou o balde da minha cabeça”, conta, entristecida.
Quando Joanita conta estas situações extremas, na qual o simples ato de tirar um balde da cabeça se torna complicado, ela quer revelar às pessoas o nível de incapacidade a qual foi submetida com a dosagem de medicação aplicada lá dentro. Se não tomasse remédio seria castigada, então tomava e dormia o dia inteiro.
“Eu cheguei a ficar 15 dias em cela com presas comuns em tratamento psiquiátrico. Eu dormia o tempo todo e quando ia pegar as minhas coisas elas tinham sumido. Muitas vezes, as frutas que a minha filha levava eu não chegava a comer pois alguém surrupiava”, lembra.
Nos últimos 30 dias a presa política ficou sozinha em sua cela, em atendimento a um pedido que sua filha fez à direção da ala psiquiátrica.
“A minha situação era tão terrível lá dentro que quando ia para o banho de sol, me deitava num banco de cimento e ficava lá dormindo, queimando a minha pele no sol. Isso tudo porque era dado um excesso de medicação e não havia acompanhamento lá dentro. Vi poucas vezes o médico”, conclui.
A VIDA HOJE
A vida de Joanita mudou totalmente depois que foi a Brasilia: está desempregada; faz tratamento semanal com psiquiatra e com psicólogo; sofre de compulsão alimentar e faz tratamento com nutricionista porque já está com 85 kg; frequenta neurologista.

Nesse mês, descobriu que tem um problema sério de pele contraído dentro do presídio e que só se manifestou agora. O tratamento demandará pelo menos seis meses.
Para quem nunca teve problema emocional, hoje Joanita está afundada em medicação. Só da área psiquiátrica são sete.
A vontade de cometer suicídio começou dentro do Presídio Colmeia e acompanha até hoje. Diz que lá dentro esse sentimento foi amenizado pelas orações constantes.

Depois que foi sentenciada a 16 anos e meio de prisão, Joanita não vê mais sentido na vida. Para quem trabalhava das 7 às 19 horas, e depois reservava a noite para levar marmitex para moradores de rua, a vida no quarto, que é onde ela fica atualmente, é muito restrita. A família redobra os cuidados, com acompanhamento 24 horas, e banca a compra de toda a medicação, além de custear a defesa da presa política.


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