
A VERDADE QUE QUEREM CALAR
Edição Ana Maria Cemin – Fotos Eduardo. F. S. Lima
Ela tem 54 anos, é designer de interiores, e nos conta a sua história de dor, horror e indignação por ser uma presa política do 8 de janeiro. Recebi seu relato no início de fevereiro de 2025 e transcrevo aqui.
“Olá, meu nome é Lucinara Rodrigues. Estou na luta pela reconquista da nossa LIBERDADE! Fui presa injustamente em Brasília ao exercer o meu direito democrático de protesto. Fui arrancada de uma manifestação pacífica, jogada em um ônibus-prisão, humilhada, torturada e tratada como uma criminosa. Hoje, sou vigiada 24 horas por dia, forçada a usar uma tornozeleira eletrônica, privada da minha liberdade e dignidade.
A injustiça não parou por aí: enquanto eu estava presa, roubaram minha marcenaria, destruíram o meu sustento, levaram cada máquina, cada ferramenta, cada esperança. Perdi o meu trabalho, meu terreno, minha independência.

MAS NÃO DESISTI!
Tudo começou com a minha indignação. Eu não aceitava que não tivéssemos acesso aos votos e acreditava que Jair Messias Bolsonaro havia vencido as eleições. Por isso, passei a frequentar a vigília em frente ao Palácio Duque de Caxias, no centro do Rio de Janeiro.
A vida ali já era difícil, com chuva constante que nos obrigava a improvisar tendas para proteger uns aos outros, mas aquilo não se comparava ao inferno que me aguardava em Brasília.
No dia 30 de dezembro, parti para a capital do Brasil com uma amiga. Comprei as nossas passagens de avião – paguei até a dela, que me ressarciu depois – e fomos. Chegando lá, por conta da minha profissão, designer de interiores e marceneira há muitos anos, ajudei a erguer uma grande tenda.

O INÍCIO DA TORTURA
A noite de 8 para 9 de janeiro de 2023 foi um pesadelo e ao amanhecer, quando nos preparávamos para sair, percebi que o Exército havia cercado todo o QG. Sem escolha, fomos obrigados a entrar nos ônibus oferecidos como a única opção para sairmos dali. Disseram que passaríamos apenas por uma triagem e seguiríamos para casa.

Mentiram!
Fomos levados dentro dos ônibus pelos arredores de Brasília como se fôssemos criminosos em exposição. E ali naqueles ônibus o tempo arrastava-se cruelmente. As horas se passavam e veio a fome, sede, desespero.
Até que, finalmente, nos deixaram no pátio da Polícia Federal. Eu já não comia desde domingo – a comida que nos davam era quase podre, me fazia mal. Sem direito a nada, seguimos em jejum por horas.
Às 16h, distribuíram uma quentinha, mas quem teria coragem de comer aquilo? O medo de sermos envenenados nos paralisava.
O desespero era total. Os idosos sofriam. Pedi à Polícia Federal para cuidar deles, acalmá-los, ajudá-los na triagem. Fiquei ali até as 23h.

A PRISÃO ARBITRÁRIA
À meia-noite, disseram que eu poderia fazer a triagem e seria liberada. Outra mentira. Passei a madrugada presa dentro da Polícia Federal. Pela manhã, tentaram me colocar dentro de um camburão – uma van horrível, fechada, sufocante.
O pânico tomou conta de mim. Gritei, chorei, mas não adiantou. Fui levada à penitenciária Colmeia.
Ali, não tínhamos direitos. Deram-me um documento já preenchido, com falsas acusações. Não perguntaram nada. Apenas me forçaram a assinar.
Dois dias sem comer. No pátio da prisão, quase 140 mulheres amontoadas em celas minúsculas de 2×2 metros. Seis, sete, às vezes até vinte presas no mesmo espaço.
Banheiros? Se é que podíamos chamar aquele horror de “banheiro”.
Havia dois, talvez três, não me lembro ao certo – mas o que lembro, e jamais esquecerei, é o nojo absoluto, a humilhação, a violação da nossa dignidade mais básica!
Sem tampa. Sem descarga. O cheiro era insuportável, impregnava as roupas, a pele, o ar que éramos obrigadas a respirar. Para que aquilo não se tornasse um esgoto a céu aberto, tentávamos separar como podíamos: “número um” num canto, “número dois” noutro. Jogávamos água constantemente, como se fosse possível conter o caos da imundície em que nos obrigaram a viver.
E os chuveiros? Dois canos miseráveis saindo da parede, como se fôssemos animais jogados num curral sujo. Sem privacidade, sem higiene, sem humanidade.
Dormíamos nesse ambiente. Comíamos nesse ambiente. Sobrevivíamos nesse ambiente.
E esperavam que saíssemos de lá sem traumas?
Durante aqueles 15 dias de horror, meu corpo e minha mente foram levados ao limite.
Duas vezes fui consumida por CRISES DE PÂNICO tão violentas que achei que fosse morrer ali mesmo, naquele inferno. O ar faltava, meu coração disparava, minhas mãos tremiam, minha visão escurecia. Era como se as paredes estivessem se fechando sobre mim, como se eu estivesse sendo engolida viva por aquela prisão sufocante.
Eu gritava por ajuda, mas ali ninguém se importava.
Minha cabeça girava. Meu peito doía. Eu me agarrava às paredes sujas, tentando respirar, tentando não desmaiar, tentando não enlouquecer. Mas não havia fuga. Não havia saída.
Eu tinha fobia de lugares fechados. E eles sabiam. E eles não se importavam.
Era como ser enterrada viva.
Passei noites inteiras acordada, apavorada, tremendo de frio e medo, esperando a próxima crise, esperando o momento em que meu corpo não aguentaria mais. Esperando que, de alguma forma, aquilo tudo finalmente acabasse.
Mas não acabou…E até hoje, quando lembro daquele lugar, daquele cheiro de desespero, meu corpo revive tudo. O terror ainda mora dentro de mim.

A SOBREVIVÊNCIA
Quando saí, deram-me 24 horas para deixar Brasília. Se não saísse, voltaria para a cadeia. Também fui proibida de passar em frente à Praça dos Três Poderes.
Sem dinheiro, sem rumo, fui salva por um padre bondoso, que organizou uma vaquinha para que eu pudesse voltar para casa.
Mas o tormento não terminou.
Cheguei destruída. Não conseguia sequer entrar no meu apartamento. Não conseguia… Passei meses vivendo na varanda. Dormia ali. Só entrava para tomar banho.
E a perseguição continuou.
O INFERNO FORA DA PRISÃO
Estou há dois anos presa em uma tortura sem fim.
Sou obrigada a comparecer toda segunda-feira à 9ª Vara da Polícia Federal. Como moro no Recreio, perco o dia inteiro – duas horas para ir, duas para voltar.
Uso tornozeleira eletrônica há dois anos. Um dispositivo de borracha que fere minha perna sem cessar. Machuca, infecciona, abre feridas. Quando melhora um pouco, volta a abrir no mesmo lugar.
Sou tratada como uma criminosa perigosa. Não posso sair aos finais de semana. Tenho toque de recolher às 22h.
Minha vida foi destruída.
Minha marcenaria foi saqueada enquanto eu estava presa. Roubaram todas as minhas máquinas. No início, tive medo de denunciar. Mas depois, quando voltaram para levar o que restava, criei coragem e registrei um boletim de ocorrência.
Além do meu trabalho, perdi também meu terreno.
Tentaram me tirar tudo. Até mesmo a minha dignidade.
A dor não ficou para trás. Ela me acompanha todos os dias, como uma sombra implacável, um lembrete cruel de todas as violações que sofri e das marcas que jamais cicatrizarão. Mas NÃO ME QUEBRARAM!!!
A DOR COLETIVA
Hoje, não sou apenas Lucinara. Meu sofrimento não é apenas meu.
Carrego em mim a dor de milhares. Somos cerca de 2.000 pessoas marcadas, perseguidas, silenciadas. Presos políticos em nosso próprio país. Gritamos por liberdade, mas nossa voz ecoa em corredores frios de tribunais e celas superlotadas.
Tenho uma amiga chamada Adalgiza Maria Dourado que completou dia 01 de janeiro, 65 anos, que já não vê sentido na vida. Ela fala em suicídio. Eu oro por ela todas as noites, mas me pergunto: quantos mais estão à beira do abismo? Quantos já desistiram? Quantos ainda resistem, mas à custa de um sofrimento insuportável?
E as mães? As mães que foram arrancadas de seus filhos. Os filhos que cresceram sem suas mães. Famílias destruídas, amores separados, vidas despedaçadas.
E aqueles que foram forçados a confessar crimes que não cometeram? Apenas para se livrar da tornozeleira, para poderem cuidar dos filhos, para tentarem voltar a viver… Que escolha cruel essa que nos impuseram!
A verdade é que estamos todos aprisionados. Uns atrás das grades. Outros atrás do medo.
Quero minha liberdade de volta.
Quero meu país de volta.
Quero justiça por tudo o que nos foi roubado!”
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