SAUDADES DE CASA: 7 MESES NO PRESÍDIO E AGORA NO EXÍLIO
Ana Maria Cemin – Foto de capa: Eduardo F. S. Lima
As linhas que seguem são de um preso político condenado a 17 anos e é fruto de uma conversa que tivemos por whatsapp nesse domingo, 10.11.2024. Na primeira parte, você conhecerá um pouco sobre ele (sem citar nome) e, na segunda parte, você lerá o que ele escreveu dentro da cela no CDP II do Papuda.
Escrevi um texto enquanto estive preso no Complexo Papuda, em Brasília, por sete meses. Após escrever este texto dentro da cela, meu amigo leu para mim e eu chorei, mesmo sabendo todo o conteúdo. Lendo pausadamente, sempre me emociono.
Eu tenho medo de me expor, mesmo achando que talvez seja o que deveríamos fazer.
Tenho 57 anos, trabalhei por 17 anos na Caterpillar no estado de São Paulo, mas sai em agosto de 2020, na pandemia.
Em janeiro de 2023, fui para a manifestação de Brasília e fui condenado a 17 anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje estou exilado e fui obrigado a deixar para trás mulher, filhos, mãe, irmãs. Sai do Brasil em abril, para não voltar ao cárcere.
É triste demais estar longe de casa e dos meus familiares. Ontem e hoje a saudade bateu muito forte, mas me sinto seguro aqui.
Eu fui preso dentro do Senado Federal no dia 8 mesmo, quando estava rezando o meu terço.
Tenho vídeos que mostram o que fiz dentro do Senado e, principalmente, o que não fiz. Porém não adianta provar que nada fiz para este governo, para este STF, para esta justiça que está no Brasil hoje.
Num dos vídeos que guardo dois policiais nos dizem que dentro do Senado estaríamos seguros. Fiquei e fui preso, junto com o Clezão (mártir do 8 de janeiro que faleceu dentro do Presídio Papuda, mesmo com parecer favorável de soltura pela Procuradoria-Geral da República).
Não conhecia o Clezão. Aliás, não conhecia ninguém que estava em Brasília naquele dia, porque fui sozinho, de ônibus e sem custo.
É doloroso lembrar de tudo isso.
Hoje fui à missa e chorei muito. Estamos todos cansados. Porém, todo dia agradeço a Deus, pois Ele sabe que eu posso aguentar.
TEXTO ESCRITO DENTRO DO PAPUDA
Ontem foi seu último dia! E agora?
A partir das 0:00 horas, você deixou todos os seus planos para trás: deixou seus objetivos, sonhos, compromissos, promessas, amigos, parentes, bens, dívidas e animais de estimação.
A partir de hoje, quem será você?
O que fará?
Quais são seus planos?
O mundo que deixou para trás continuará em ritmo normal, como se nada houvesse ocorrido. Para o mundo, você é apenas um número; mas, para quem te amava, você era único. Você, com seus defeitos, manias e comportamentos, tinha um lugar especial nos corações das pessoas… Aliás, acredito que tinha, pois isso vai depender de como você era com elas.
Outras pessoas provavelmente não ocuparão seu lugar, ou vão? Só você pode responder isso, não é?
O mundo ao qual agora pertence é estranho, com paredes frias, sem espaços pessoais, sem árvores, pássaros, conforto ou privacidade para suas necessidades básicas, incluindo dentista e médico.
A higiene se torna essencial, pois o convívio é mais difícil com tantas pessoas de diferentes culturas e hábitos; é quase impossível não haver atritos entre elas.
Quanto à alimentação, que tal imaginar um pouco:
Imagine refeições cujo tempero é o oposto do que você gosta, com aparência de algo preparado sem amor. Pouquíssimas vezes na semana, a refeição será diferente, e ela irá agradar apenas um pouco.
Você gosta de alguma fruta em específico? Que tal recebê-la e ter que guardá-la para comê-la no lugar dessas refeições que você não consegue comer?
Privacidade é bom e essencial, mas como viver sem ela? Banheiro sem porta, em um cômodo com outras pessoas, ruídos e odores sendo compartilhados com todos do ambiente.
Procedimentos e submissão são exigidos a todo momento. Não tente desobedecer, pois não será agradável… Aqui, você é apenas um número.
Já se imaginou dormindo em um quarto com muitas pessoas em espaço reduzido? Com aberturas nas paredes, reforçadas com barras de aço? E, em dias de chuva, ter que colocar pedaços de papelão para que a água não molhe sua cama, mas nada pode ser feito quando está frio?
Tempo ocioso é o que não falta. Confinado por quase 22 horas, você só tem aproximadamente 2 horas de banho de sol. As estrelas e a lua são quase impossíveis de ver, e uma bolacha é uma iguaria.
Isto é um presídio, o lado menos ruim visto por mim.
O lado mais triste é a saudade da família; isso dói.
Mas isso pode ser apenas uma estória (fictícia) e não uma história (real). Só depende de você.
Seu último dia ainda não chegou, e tomara que esteja distante, bem distante. Então, ainda há tempo para mudanças. Você consegue, você pode, você vai tentar fazer um novo começo.
As pessoas que convivem com você merecem atenção, consideração, respeito, amor e, principalmente, seu “TEMPO”.
Você acha que não tem tempo lá fora? Como conseguiu tempo aqui dentro? O tempo não para.
Deguste com calma o que gosta de comer, aprecie bebidas com calma e acompanhado de quem gosta, sinta o perfume das flores e note mais as criações de Deus. Ele fez tudo para você.
Uma brisa às vezes incomoda, mas numa cela, é como a vida que sopra no seu rosto, refresca e dá a esperança de uma liberdade próxima.
O canto de um pássaro, o choro de uma criança ou uma música são coisas que não existem em um presídio. Não existem cores diversas; aqui, tudo é monocromático, sem vida.
Faça diferente, mude seus hábitos, viaje, visite seus familiares e amigos, visite asilos e orfanatos. Divida seu amor com seu próximo, ame, ria e viva a sua vida.
Não permita que seu último dia seja antecipado. Lute e desafie o desconhecido.
Deus Pai está contigo. Ele nos ampara e nos acalenta.
Faça por merecer.
CDP II PAPUDA – BRASÍLIA.
R. G.
Perola Tuon
Linda carta. Emocionante!
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