Por Ana Maria Cemin – Jornalista
Reeditado em 12/01/2024
O meu entrevistado se chama Márcio Rafael Marques Pereira, 42 anos, morador de Novo Hamburgo, RS. É pai de Sophia (14 anos), Alice (12 anos) e Joaquim (9 anos). Ele ficou preso de 9 de janeiro a 25 de março de 2023 em Brasília, onde se manifestava de forma pacífica e ordeira. Na época ele integrava um grupo de motoristas de aplicativo Jack Bauer 24 horas e foi quatro vezes à capital federal participar dos atos democráticos no QG em frente ao quartel.
Ele nos conta que patriotas impediram a morte de muita gente no dia 8 de janeiro, por perceberem que infiltrados iriam colocar fogo em pelo menos num dos prédios: o Superior Tribunal Federal.
Esse patriota hoje usa tornozeleira eletrônica, não está trabalhando, mas me diz que o projeto de Brasil que ele deseja para seus descendentes continua de pé e que sua fé em Cristo não esmoreceu.
“A nossa programação na Praça dos Três Poderes era de ficarmos acampados e fazer a nossa resistência ao governo que recém tinha assumido, usando as nossas armas: as orações e louvores. Ao chegarmos à Praça, passamos por revista policial e eu, por exemplo, abri a minha mochila onde tinha uma muda de roupa e garrafinhas com água. O policial me fez abrir uma das garrafinhas, cheirou para conferir se era mesmo água e me deixou passar.
Na praça, vi uma confusão e me aproximei para ver o que estava ocorrendo. Cheguei a entrar por um vidro no STF e, depois, vi quando o prédio estava aberto e faziam com que todo mundo entrasse. Tinha muito policiamento.
A confusão que me referi antes eram de patriotas tentando impedir que infiltrados usassem etanol para atear fogo no prédio do STF. Era um grupo de infiltrados com quatro galões e nós conseguimos imobilizar aqueles sujeitos e os entregamos para a polícia militar, como as devidas provas.
Depois que sai do presídio, procurei em todos os canais da internet para ver se esse fato estava registrado em algum lugar e não achei nada. É como se não tivesse acontecido, mas nós, os patriotas, vivemos isso e sabemos que impedimos que o pior ocorresse. Muitas mortes poderiam ter ocorrido dentro do prédio.
As pessoas que quebravam vestiam preto e seus rostos estavam tapados. Tinham barras de ferro nas mãos, tipo bate estaca, para quebrar o alarme de incêndio.
A água começou a escorrer e penso que, mesmo com aquela água, o etanol poderia ter provocado incêndio e matar muita gente. E se refletirmos um pouco vamos compreender que ninguém vai num posto para comprar um galão de etanol para sair passeando pela Praça dos Três Poderes em grupo.
O mérito de evitar o pior é nosso, dos patriotas, e os policiais receberam essas pessoas por nosso intermédio e sabem que eles tinham a intenção de cometer um crime.
“NÃO QUEBRA! NÃO QUEBRA!”
Eu estava junto gritando para não quebrarem, mas os infiltrados estavam muito organizados e começaram a quebrar a porta antes de atingirem o alarme de incêndio.
Depois do que relatei, fui para baixo de uma das cúpulas e me abriguei para permanecer acampado. Em nenhum momento pensamos que passaríamos pelos atos violentos que vieram a seguir, e continuamos com o nosso propósito de nos manifestar pacificamente até que se tornou impossível continuar.
Porém, em pouco tempo entramos num cenário de muito risco para os patriotas, com a tropa de choque e todos aqueles policiais, além do suporte de helicópteros sobrevoando, dando tiros com balas de borracha e jogando bombas de gás em nós.
Eu estendi a bandeira aberta em direção ao helicóptero e não fui atingido. De certa forma, me coloquei na linha de frente da resistência. Meus olhos e meu rosto ardiam e estava muito difícil para respirar. Até esse momento me sentia preparado para superar essa ação da polícia e pensava: “Eu estou disposto a dar a minha vida pela nossa liberdade. Qual o futuro dos meus filhos e das próximas gerações?”
Eu não sou daquelas pessoas que conseguem ficar acomodadas dentro de casa, sabendo que estamos virando vítimas do comunismo. Nós despertamos, descobrimos muitas verdades. Sei que fui enganado no passado, por acreditar que Fernando Henrique Cardoso era da direita.
Cai na conversa, como muitos brasileiros, desse joguinho político de alternância de poder entre PT e PSDB. Passou esse filme na minha cabeça e me mantive convicto lá no acampamento improvisado, debaixo da cúpula, na Praça dos Três Poderes.
FOMOS TOCADOS DE VOLTA PARA O QG
A tropa de choque e as demais polícias vieram em bloco atirando aleatoriamente e nós percebemos que precisávamos tirar todo mundo dali. Falou mais alto o nosso espírito de solidariedade, pois naquele cenário de guerra estavam sendo atingidas mulheres, crianças, idosos e deficientes. Até caveirão usaram contra nós, nos empurrando para o QG. Ajudamos as pessoas a saírem e entendemos que perdemos a batalha.
De volta no QG, continuamos sendo manipulados, com o exército afirmando que nós poderíamos ficar tranquilos, não poderiam nos prender. Na nossa inocência, pensávamos que estávamos amparados pela Constituição Federal. Também estávamos cientes de que não foram patriotas a praticar o quebra-quebra, portanto não temíamos qualquer represália do Estado Brasileiro.
Qual a razão de temer se você nada fez de errado?
Depois do banho no QG, dormi e só acordei às 5 horas do dia 9 de janeiro, quando havia um forte movimento do exército. Eu estava comemorando com aquilo e pensei: “Vai acontecer algo e vamos chegar ao nosso objetivo”.
Mas não era nada disso: fui preso, junto com mais 2 mil pessoas e levado para o Campo de Concentração (Ginásio da Polícia Federal). Depois, fui para o presídio onde passei mais de 70 dias. Agora, ando com tonozeleira eletrônica de bandido e uma série de limitações para sobreviver. Mas continuo firme, acreditando nos meus valores e princípios.”
EU SERIA VOLUNTÁRIO, SE HOUVESSE TROCA DE PRESOS – declaração feita em abril de 2023
“Se me dissessem ser possível libertar pessoas que estão presas no Papuda, eu seria voluntário para voltar lá em troca delas. Ainda há muitos patriotas no presídio sem condições físicas e psicológicas para permanecer no cárcere. Nenhum de nós deveria ter sido preso, mas a situação de alguns patriotas que continuam lá (estamos em 21 de abril), me comove muito. Tem o caso de um senhor idoso com fralda geriátrica, um outro com suspeita de câncer de próstata que sente muita dor, além do fato de idosos estarem dormindo no chão.
Os que ainda estão no presídio estão amontoados na Galeria B do Bloco 6. Quando chegamos lá, em janeiro, ocupamos os Bloco 4 (galerias A e B) e Bloco 6 (galerias A e B). Com a primeira leva de soltos, fecharam o Bloco 4 e levaram todos para o Bloco 6. Na última saída, concentram todos num único bloco e as pessoas têm que se acomodar como dá. Muitos senhores com enfermidades dormem de qualquer jeito.
Presenciei a queda de um patriota no banheiro que ficou 12 horas deitado no piso frio até que chegasse socorro. É um homem sem saúde, pois passou por cinco cirurgias de coluna nos últimos anos e, ao bater no vaso, caiu e ficou imóvel até as 7 horas da manhã. Ficamos em torno dele sem poder ajudar, com ele sofrendo dores horríveis, sem remédio para aplacar a dor. No Papuda, não tem um atendimento de saúde, de emergência móvel, seja para criminosos ou outras situações como a nossa, de presos políticos. Até para ter acesso a um simples paracetamol é complicado no presídio.
Lá tive contato com o índio xavante Sererê, preso ainda em dezembro, e lamento que, sendo uma pessoa também muito doente, está exposto às dificuldades do presídio em termos de cuidados com a saúde. Quando passamos por um surto de gripe, para conseguir um remédio era algo complicado. Se aparecia um paracetamol, nós dividíamos em quatro pedaços para compartilhar, porque era muito difícil conseguir qualquer medicação. Para reduzir a febre dos colegas de cela, utilizávamos compressas com água fria.
OS PATRIOTAS NÃO TÊM ÍNDOLE DE BANDIDOS
E não são somente os problemas físicos que vi no presídio: muitas pessoas não estão preparadas para enfrentar uma injustiça dessas. Numa das saídas para o pátio, encontrei um conhecido muito abalado psicologicamente, então pedi para mudar para a cela dele para dar um suporte. Ele melhorou bastante depois que começamos a conversar. Iniciamos um ritmo de oração para fortalecê-lo. Eu sempre tinha um sorriso no rosto para compartilhar com os meus colegas e conseguia brincar, distrair e os convidava para orar. Aliás, creio que nem um congresso cristão reuniu tantos pastores como no Papuda este ano (2023).
A humilhação dos patriotas é constante no presídio. Para irmos ao pátio, para o sol, seguíamos de cuecas carregando as nossas roupas e chinelos nas mãos. Chegando lá, sentávamo-nos com o sol forte na nossa cabeça, virados para a parede, e em silêncio total. Só quando o guarda dava a ordem, podíamos nos mexer. Dentro da cela, éramos alimentados como se alimenta cachorros em um canil. A água que bebíamos era da torneira e usávamos um trapo para filtrar, que ficava todo sujo com a ferrugem.
Tive na cela um colega que perguntou “Será que o seguro paga a família se a gente se mata?”. Comecei a conversar com ele, diverti-lo e incomodar no bom sentido. Nessas horas é preciso tirar da pessoa os pensamentos ruins. Criamos o torneio de futebol “Xepa League”, numa alusão à comida que nos entregavam que chamávamos de xepa. Tínhamos um troféu feito com o alumínio da marmita e as medalhas feitas em alumínio e paninho. Usávamos de nossa criatividade para sobreviver e nos divertir, além dos muitos momentos de oração.
JACK BAUER 24 HORAS
Fui integrante do grupo de motoristas de aplicativo Jack Bauer 24 horas, hoje não posso mais trabalhar no grupo. Fazia parte de uma associação que conta com 100 pessoas, todas de direita, e não aceitamos pessoal de esquerda nem isentos. Juntos, criamos um sistema de segurança preventiva, porque ficamos muito vulneráveis a assaltos e roubos nas ruas. Faz três anos que estamos invictos, sem ocorrência.
Somos uma família e, quando voltei do Papuda, tinha mais membros do Jack Bauer 24 horas me recepcionando do que familiares, até porque minha família é de outra cidade e fica difícil o deslocamento. Para participar do movimento verde amarelo, renunciei a renda e assumiu a representatividade da minha classe de motorista de aplicativo em Brasília. Eu acredito ser importante isso, porque algumas pessoas acham que só quem tem muito dinheiro participa do movimento de direita e não é verdade. Os pobres também lutam por um Brasil melhor. Essa ideia de que se a pessoa é pobre tem que ser de esquerda precisa mudar.”
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