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O BRASIL QUE PRENDE CIDADÃOS POR OPINIÃO

Ana Maria Cemin – Jornalista

06/10/2023 – 54 99133 7567

Essa entrevista é uma continuidade da matéria Holocausto Brasileiro: Prisão e Desejos Suicidas que está neste mesmo blog.

“Teve militar que passou pelo acampamento no dia 8 de janeiro para nos avisar que era para sair imediatamente porque teríamos problemas. Muitos não deram bola, como eu, porque durante 70 dias de acampamento nós tivemos tantos infiltrados de esquerda no movimento pelo Brasil, era tanta mentira disseminada por eles, que chega uma hora que a gente não acredita mais, não dá bola para mais nada. Esses militares diziam que seríamos presos: “Saiam daqui!”, bradavam. Sei de gente que acreditou e foi embora. Como tinha muitas mulheres, crianças, idosos, cachorros a ideia de acontecer algo grave no acampamento parecia um absurdo, mas todos nós, inclusive os cães, fomos conduzidos para os ônibus na manhã do dia 9 de janeiro, quando acordamos no acampamento.

Fiz um vídeo de dentro do ônibus chorando, dizendo que fomos entregues aos lobos, porque eu estava muito decepcionada com o Exército Brasileiro. Eu não sabia o que ia ser de mim naquele momento. Ao acordarmos no dia 9 de janeiro, recebemos dos policiais a ordem de abandonar o acampamento em uma hora, e só poderíamos sair nos ônibus que eles nos ofereceram. Falaram para não nos preocuparmos, que nos levaria para uma triagem, um cadastro e, após, seríamos liberados na rodoviária ou para os nossos ônibus de excursão para voltarmos aos nossos estados.

Acordamos no QG na manhã de 9 de janeiro e fomos levados para ônibus que rodaram por horas por Brasília. Fomos revistados antes de entrar no ônibus e ao descermos no Ginásio da Polícia Federal. Prometeram nos deixar ir para casa, mas fomos enganados: saímos de lá para os presídios Papuda e Colmeia.

FOME E DESUMANIDADE

Entramos naqueles ônibus em jejum. Eu cheguei em Brasília na noite de 8 de janeiro, acampei no QG e acordei às 6h30 do dia seguinte com uma movimentação intensa no acampamento. Aliás, mal consegui dormir, porque a situação estava tensa, com helicópteros sobrevoando a noite inteira, além de drones que a polícia colocou sobre o acampamento. O ônibus da nossa cidade estava lotado e no meio daquilo tudo nós nos perdemos e era cada um por si. Eu fiquei num grupo pequeno, embarcamos no ônibus na manhã do dia 9 de janeiro e ficamos rodando por Brasília durante horas, andando em círculos. Paramos no Ginásio da Polícia Federal somente às 13h30. Infelizmente, algumas pessoas tiveram que fazer as suas necessidades dentro dos ônibus, em sacolinhas. Foi uma situação extrema: ficamos em jejum, sem banheiro e sem água.

A primeira refeição foi oferecida por volta das 17 horas e fiz vídeos denunciando o estado lamentável de crianças, idosos e mulheres. Ocorreram mortes lá dentro, inclusive eu gravei uma senhora que foi a óbito. Teve mais gente, inclusive tentativas de suicídio por se encontrarem naquela situação. A Polícia Federal fez um post no Twitter de que era fake news, que não teve nenhuma morte lá dentro, que era mentira. É a nossa palavra contra a da Polícia Federal, porque até então a gente ainda não tinha entrado lá na Polícia Federal para fazer a triagem, não tinha cadastro de ninguém, então essas pessoas que faleceram “não existiram”, por elas não tinham sido identificadas até então, razão pela qual é muito fácil para eles dizerem que ninguém morreu lá no ginásio.

ABANDONO

O Brasil entrou em “estado de exceção”. Temos um falso imperador que manda no Brasil, no Congresso Nacional, no Presidente da República e nas instituições. Lá no Presídio Colmeia, nós nos sentimos abandonadas pelas autoridades, pois foram poucos os deputados e senadores a nos visitar. Nem mesmo o deputado federal que foi reeleito na campanha que coordenei foi até o presídio nos ver.

A visita das autoridades era a nossa oportunidade de saber o que estava acontecendo no mundo além das grades, como o terremoto na Turquia, alagamentos em São Paulo, daquele louco que invadiu a escolinha maternal e outras tantas notícias. Eles nos traziam conforto também, porque iam fiscalizar as nossas condições, nos trazer uma palavra de alento.

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA     

Nós, católicas e espíritas kardecistas tivemos que nos unir no Colmeia, porque havia intolerância religiosa das evangélicas. Elas são muito radicais, bem xiitas. Chamavam as católicas de idólatras e as espíritas kardecistas de macumbeiras.  Então nós nos reunimos para rezar o terço juntas diariamente, às 18 horas, sem falhar, enquanto as evangélicas continuaram com os seus cultos diários de duração de cerca de três horas.

Apesar dessa divergência religiosa, isso não criou inimizade entre todas nós. Inicialmente, tínhamos somente a bíblia evangélica, então pedimos uma católica, onde tem a presença de Nossa Senhora.

Fiz amizade com uma pessoa incrível lá dentro, a Elisa, uma interna promovida por bom comportamento. Essas presas comuns ajudavam nas tarefas do presídio, como na distribuição da alimentação, na cantina e na biblioteca. Por meio delas podíamos ter alguma notícia do mundo, até porque elas têm televisão nas celas. As nossas celas não tinham iluminação, então lá por volta das 19h30 nos preparávamos para dormir por ser escuro. Eu lembro de escutar a vinheta do Jornal Nacional quando estávamos deitadas.

Por sorte tínhamos acesso à biblioteca, porque sem ler nós teríamos enlouquecido lá dentro. Éramos 103 mulheres numa cela superlotada, então ler me acalmava.

A presença constante de policiamento em todos os nossos passos não nos levou a pensar o que viria a seguir: prisão com acusações graves, de algo que não fizemos.

SUSPEITA DE COMIDA BATIZADA

A comida nos deixava estufadas. Além do salitro que eles colocavam na comida, acho que deviam colocar alguma medicação para manter tantas mulheres tranquilas em estado de confinamento. Não digo que estávamos em estado de zumbis, dormindo dopada ou sedada. Não, era alguma coisa mais leve, porque éramos muitas num mesmo local e as chances de tudo fugir ao controle era muito grande. Claro que isso pode ser apenas uma divagação, porque também é possível a mão de Deus estar agindo em nós, nos amparando naquela circunstância.

Eu fui para frente do quartel na minha cidade e encontrei pessoas muito diferentes do que costumava encontrar. Eram pessoas selecionadas, que foram se expressar nas manifestações. Mesmo que tenha discordância em relação a alguns aspectos, até na questão religiosa, tem também os ideais políticos. E era isso que eu via ali na cela: as mulheres tinham o mesmo pensamento, o mesmo objetivo, defendiam os mesmos princípios. Então, essa harmonia pode ter sido criada por uma leve drogadição, é uma hipótese, mas também havia sintonia de valores. A maioria foi a Brasilia movida por um desejo de um país limpo, sem corrupção. A gente estava pedindo o código-fonte das urnas, que as Forças Armadas estavam solicitando.

TEMPO PARA CONTAR AS VIVÊNCIAS

Foram presas mulheres com muita idade. Aliás, de todas as idades. E a gente conversou muito sobre o que aconteceu lá na Praça. Eu não fui, cheguei na noite do dia 8 de janeiro em Brasília, mas elas contaram que passaram por revistas da polícia lá na Esplanada. Ficaram somente com as suas bandeiras do Brasil e as suas bíblias, além de garrafinha com água e bolachinhas. São essas as terroristas e só mesmo esse pessoal da esquerda, do PT, que tem uma mente sórdida pode nos chamar assim.

As pessoas que foram presas e respondem no Inquérito 4922 estavam dentro dos prédios, mas não significa que quebraram algo. A polícia começou a jogar bombas e as pessoas foram se proteger lá dentro. Depois, foram presas, acusadas e algumas estão condenadas entre 12 e 17 anos de prisão.

AS MENINAS DO 4922

As presas que se protegeram nos prédios devido aos bombardeios da polícia, ficaram no Inquérito 4922. Elas contaram no presídio que a polícia e o exército convidaram os manifestantes a entrar. “Venham, se abriguem aqui”, disseram a eles. E eu tenho suspeitas de que era para ter acontecido uma chacina nesse dia, tanto na Esplanada quanto no acampamento.

Se não fosse o Exército, a polícia teria invadido o acampamento e quem sabe teria atirado nas pessoas. Todas que foram presas na Esplanada contaram a mesma história para mim.  Porém, uma delas foi a que contou a história mais forte. Ela me disse que quando estavam rendidas, deitadas de barriga com a cara no chão lá do Palácio, elas se sujaram na urina e no vômito.

Como a situação ficou crítica, os corpos daquelas pessoas entraram em autodefesa e a resposta ao gás lacrimogêneo, e o de efeito moral, foi a produção de uma gosma como se fosse um catarro e as pessoas vomitaram aquilo, ali no chão. Outros muitos se urinaram de desespero. Portanto, quando estavam rendidas no chão, viradas de barriga para baixo, com as mãos na cabeça, estavam com a cara no vômito e na urina. Mas não bastasse isso, os policiais pisaram na cabeça delas.

Nas conversas que tivemos dentro da prisão, nós chegamos à conclusão de que o comando que reprimiu a manifestação desistiu do plano de chacina no meio do caminho. Talvez porque havia muitas câmeras dentro dos prédios. Uma das minhas colegas de cela contou ter visto os policiais levantarem a cabeça de algumas mulheres do chão pelos cabelos. Assim que foram tratadas. Outro relato delas é de que os infiltrados estavam com uma pulseirinha, então a polícia que estava no local sabia quem podia liberar.

VOLTA AO TRABALHO DEPOIS DA PRISÃO

Eu consegui voltar ao trabalho numa clínica médica que foi fundada pelos meus avós. Sou a 3ª geração trabalhando nessa clínica e eu atuo na administração. Inicialmente, comecei a trabalhar só pela manhã, até melhorar das minhas sequelas da prisão. Apesar de ser uma pessoa forte, aliás todo mundo fala da minha personalidade forte, eu fiquei muito abalada psicologicamente. Precisei fazer tratamento psicológico e tomar Clonazepam para dormir.

Resido numa cidade onde tem muita manobra militar e, quase que diariamente tem treinamento com helicópteros. Quando ouço eles sobre a minha casa eu tremo e fico gelada. Me dá um nervosismo e sou obrigada a tomar um Rivotril sublingual. Qualquer barulho de porta batendo me faz tremer, pois eu lembro do barulho das portas de ferro do presídio batendo. Era ensurdecedor!

Ao sair do Presídio Colmeia, depois que eu coloquei a tornozeleira eletrônica, ficou difícil sair ao ar livre com um comportamento normal. Tanto que saí de lá com as mãos para trás e os patriotas que estavam nos esperando do lado de fora, com roupas e lanche de apoio, me disseram para deixar os braços soltos, que eu não precisava mais andar como uma detenta. Às vezes eu me pego com as mãos para trás, em especial quando paro em algum lugar para conversar com alguém. Ficaram sequelas psicológica e físicas.

PÂNICO

Quando cheguei na capital do meu estado no aeroporto à noite, num sábado, fui recebida por um primo e tios. No domingo segui para a minha cidade, que fica no interior, e no meio do caminho paramos num restaurante de beira de estrada para almoçar e eu não consegui descer do carro. Eu tinha receio de as pessoas verem que eu estava com tornozeleira, porque é muito humilhante estar com aquilo e entrar num local público lotado. Eu não sabia como é que eu seria recebida e isso causou uma crise de ansiedade. Por sorte esse tio que foi me buscar é médico e ele tinha o Rivotril sublingual no carro.

Ainda quando estava no Aeroporto de Brasília, na sala de embarque, uma senhora se aproximou de mim e perguntou a razão de eu estar usando uma tornozeleira eletrônica. Então expliquei que eu era uma patriota, a última gaúcha presa no QG que estava voltando para casa. Ela se apresentou, disse que fazia parte de um grupo de patriotas e eu comecei a chorar desesperadamente. Ela acabou me consolando, dizendo que eu não estava sozinha, e se sentou ao meu lado até a decolagem do voo de volta para casa.

LONGE DOS FILHOS DESDE O NATAL

Eu não via os meus filhos desde o Natal, porque eles saíram em férias com o pai; foram à praia. Como fiquei sozinha em casa e sou separada, surgiu a oportunidade de ir de ônibus para Brasília. Fui com a ideia de chegar em Brasília na segunda-feira, dia 9 de janeiro, e de regressar para a minha cidade dois dias depois. A última vez que vi meus filhos, até voltar para casa da prisão, foi no Natal de 2022. Quando fui solta era véspera do Dia das Mães e, se eu não tivesse sido solta para passar esse dia com os meus filhos, eu teria me suicidado no presídio. Eu tomaria uma overdose de remédio.

Meu pai foi quem ficou com os meus filhos esse tempo todo, conciliando a administração da clínica e os cuidados com dois pequenos. Ele é idoso, tem 72 anos e é cardiopata. Imagina que ele teve que cuidar das duas crianças para mim, porque o pai deles é caminhoneiro. A minha mãe mora longe, em outra cidade. A minha filha chorava todas as noites e pedia por mim. Minha família sofreu muito.

Presença de forte policiamento no QG de Brasília para levar os patriotas ao Ginásio e, dois dias depois, aos presídios.

PRISÕES ERRADAS, PESSOAS INOCENTES SOFREM

Eu sempre fui uma pessoa engajada e esclarecida, e eu vi muita coisa errada dentro do presídio, como a prisão de mulheres doentes. Uma com câncer em remissão com a cabeça toda carequinha devido às quimioterapias e outra com um câncer ativo nas mamas, sem qualquer atendimento. Tinha senhoras com fibromialgia, cardiopatas e com pressão alta. Uma outra era dependente de remédios fortíssimos por ter risco de aneurisma. Todas ficaram sem atendimento ou medicação, até porque quem foi se manifestar em Brasília levou remédios para poucos dias.

Lembro de uma presa política que tinha consulta e exames marcados para quando ela voltasse e na semana seguinte passaria por uma cirurgia. Tinha pessoas com tumores lá dentro. Graças a Deus, eu só tinha o problema psicológico, com privação de sono. Fisicamente, tive enxaqueca, mas isso não era nada perto do que as outras mulheres sofreram lá dentro.

Era muito triste ver mulheres idosas tomando banho gelado, um frio horrível. A gente procurava tomar banho perto do meio-dia, porque a água não estava tão gelada. Cheguei a lavar os meus cabelos com sabão em pó, porque nem sempre tinha xampu à disposição e chegou a um ponto que eles proibiram os advogados de nos entregar o cobal. O material de limpeza, de higiene, não entrava mais. Ficamos sem papel higiênico, pasta de dente, hidratante, xampu etc. Nada! Às vezes a gente conseguia sabonete. Fizemos requerimento para pedir sabonete, creme dental e desodorante.

Com tudo isso, cheguei na minha cidade e no outro dia eu fui correndo cortar o meu cabelo. Eu tinha um cabelão longo e cortei curtinho, tipo chanel, porque o meu cabelo estava seco, uma vassoura. A minha pele estava seca, meus cotovelos estavam com crostas. As minhas pernas estavam descascando.

VOLTAR A COMER

Viver tanto tempo com privações de comida faz com que o organismo se acostume. Demorei duas semanas para voltar a comer direito, me refiro a feijão, arroz e carne.  Cada vez que eu via um prato com comida eu chorava desesperadamente, por lembrar das minhas amigas que ficaram lá no Colmeia. Lá não tinha carne, não tinha comida de qualidade. Eu lembrava que elas estavam comendo aquela lavagem de porcos, com aqueles legumes estragados e azedos, então eu me sentia muito culpada de estar comendo uma refeição boa. Eu demorei a conseguir comer, porque vinha o choro.

Eu nunca mais serei a mesma pessoa. Nunca mais! Essa experiência serviu de aprendizado em vários sentidos, porque eu tive muito tempo para pensar e repensar as minhas atitudes. Tanto analisei meu comportamento quando à carreira política que almejo quanto questões pessoais, como meus filhos. Nós precisamos contar a verdade de tudo o que aconteceu. Nós precisamos continuar a colocar a nossa visão conservadora e defender princípios. Para resumir em uma frase, eu diria: se o inferno existe, eu já estive lá.”

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