“EU PERCEBI QUE SERIA UMA CILADA NO DIA 8”

Ana Maria Cemin – Jornalista

13/03/2024 – (54) 99133 7567

Em três momentos, a minha entrevistada teve a oportunidade de não ser presa por 214 dias no Presídio Colmeia, nem de ser condenada a 14 anos de prisão, conforme sentença do Supremo Tribunal Federal, anunciada no dia 8 de março passado.

Quando ela voltará ao presídio ninguém sabe, porque depende dos trâmites judiciais. Por enquanto, ela é uma presa domiciliar, que tenta reinventar-se trabalhando em casa como auxiliar de uma diretora de rádio e como consultora de seguro de veículos, em diferentes turnos.

Intuiu que algo muito errado ocorreria ainda na manhã do dia 8 de janeiro de 2023, quando ela soube da chegada da Força Nacional.

Como moradora de Brasília, ela sabia que era algo absolutamente atípico, como todo o restante dos acontecimentos que vieram após. Naquele momento, ela poderia ter saído do QG e ido para a sua casa, mas ela ficou e ainda naquele dia percebeu que todas as forças – BOP, Polícia de Choque, Policia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e policiais do legislativo – atuaram de forma interligada, demonstrando estarem preparadas para aquele momento.

A segunda oportunidade de sair daquele contexto foi quando, dentro de uma sala de um deputado, ela conseguiu fazer uma corda com as cortinas da janela e, com a ajuda de outras pessoas, fez descer pela janela do segundo andar até o térreo de 15 a 20 pessoas que estavam sendo sufocadas com o gás, sem consegui respirar. Não foi com eles, pois tinha se perdido de uma amiga e desejava encontrá-la.

A terceira oportunidade foi dada por três policiais do legislativo, quando ainda estava na área da Câmara de Deputados. Eles disseram que ela e outras duas pessoas poderiam sair do prédio. Ao invés de sair, ela se dirigiu ao Plenário do Senado, onde ficou por duas horas fazendo uma live, sentada numa das cadeiras destinadas aos legisladores, até que foi dada a sua voz de prisão, às 18h45 do dia 8 de janeiro.

Por tudo isso, passa pela minha cabeça de que talvez tenha um destino nos aguardando. E esse destino por um lado nos aproxima das ocorrências infelizes e injustas, mas por outro nos forja para sermos semeadores de algo bem maior. Tudo o que essa patriota vivenciou nos sete meses de prisão revelou a ela que a sociedade brasileira está muito longe de recuperar as pessoas que cometem crimes. Ao contrário, as massacram oferecendo uma vida nada digna dentro dos presídios e nenhuma condição de reintegração quando chegam aqui fora.

Ana Flávia de Souza Rosa, 36 anos, é mãe de um garoto de 6 anos e de uma moça de 18 anos, é avó de uma bebê de seis meses. Tem sete irmãos, sendo cinco adotados. É líder comunitária desde 2014 no Bairro Santa Luzia, da cidade Estrutura do Distrito Federal. É coordenadora voluntária da Creche Vovó Luzimar. Até ser presa em Brasília em 8 de janeiro de 2023, ela trabalhava como MEI sendo líder de uma equipe de 300 revendedoras de cosméticos. Ela é pastora na Igreja Assembleia de Deus Ressureição de Cristo, onde a sua mãe é bispa.

Desde o dia 8 de março, Ana Flávia convive com a ideia de que está condenada a 14 anos por cinco crimes, por ter estado naquele dia no plenário do Senado. Ela e outras 37 pessoas foram presas (duas delas, inclusive já faleceram – Clezão e Eder).

CRIMES

• abolição violenta do estado democrático de direito,
• golpe de estado,
• dano qualificado,
• deterioração do patrimônio tombado e
• ação criminosa armada.

O QUE VIVEU NAQUELE FATÍDICO DIA?

“Eu abri mão de tudo para passar 70 dias acampada no QG aqui de Brasília, porque eu queria transparência do meu voto. Eu achava que podia exigir essa resposta, até porque havia uma cobrança dos códigos fontes pelas Forças Armadas.

No dia 8 de janeiro, quando chamaram para a descida eu já sabia que seria uma cilada, porque eu sou moradora do DF e sei como funciona aqui; só não imaginei a proporção. Tanto que desci mais tarde do que a maioria que estava no QG, que desceu por volta do meio dia.

Pela manhã, eu recebi as fotos da Força Nacional chegando em Brasília, então eu pensei que isso não aconteceria à toa. Pensei que poderia ter um embate entre os manifestantes e a polícia, como a gente viu em outras manifestações, mas não na proporção que foi, de ter a Federal, BOPE, Choque, Civil e Militar funcionando em conjunto, de forma interligada, o que mostrou estarem todos preparados, como se tivesse uma orquestra preparada há meses para atuar.

Uma situação como aquela não foi preparada de um dia para o outro. Eu, por exemplo, fui presa pela Polícia Legislativa e todo tipo de polícia estava envolvida.

Eu desci para a praça de teimosa, porque eu e minha colega fomos conversando sobre a cilada que nos aguardava lá embaixo, mas alguns amigos muito próximos já tinham descido e a gente queria saber como é que eles estavam.

Eu cheguei por volta das 15h30 e 16h, e tudo estava quebrado. Entrei para ver como estava lá dentro por curiosidade e por medo, porque o cenário na praça era de guerra. Você olhava e só via a fumaça das bombas, caveirão da Força Nacional atropelando os patriotas, cavalaria.

Eu olhava e sentia a medo, então entrei e sentei numa cadeira dentro do Plenário do Senado Federal, onde fiquei duas horas fazendo live. Os outros também entraram para se proteger e os policiais convidaram quem estava do lado de fora para entrar. A minha live foi derrubada antes de ser gravada totalmente, mas tem uma amiga que mora fora do Brasil que conseguiu gravar uma parte, que está no meu processo e parece que ninguém viu isso, parece que fazem questão de não ver a verdade. Recebi a voz de prisão às 15 para 19 da noite. Sei exatamente porque fazia a live.

Durante os sete meses que fiquei presa, a minha advogada entrou com três pedidos de Prisão Domiciliar Humanitária (PDH) por eu ter uma criança que na época estava por 5 anos. Ninguém olhou esse pedido no STF. O nosso maior problema é a falta de individualização do processo.

MUITOS ÔNIBUS CHEGANDO NO INÍCIO DA TARDE

Enquanto descia por volta das 13h30 e 14h vi muitos ônibus chegando de fora. A polícia militar nos acompanhou em todo o trajeto numa viatura e isso nos passou muita segurança. Ao chegarmos próximo à Rodoviária do plano piloto, passamos por uma barreira da polícia militar que nos revistou e, ao invés de falarem para não descer porque estava tendo um embate, deixaram a gente passar. Ou seja, a multidão de patriotas passava para aquele cenário de guerra com o aval daqueles policiais. Soubemos do problema por meio de lives de quem estava ao vivo.

Enquanto seguíamos para a praça, vinham grupos na nossa direção, saídos de dentro dos anexos dos ministérios, falando assim: “A nossa parte a gente já fez, agora é a vez de vocês”. Era como se aquelas mulheres e homens agitassem a população no calor da emoção.

Quando eu cheguei na frente do Congresso Nacional, onde tinha aquelas barreiras de ferro, vi que elas estavam todas no chão. Mas ainda não tinha visto os prédios arrebentados, porque subi a rampa e de lá não dava para ver o cenário.

Subi batendo fotos e até me divertindo. A gente era tão inocente ao ponto de pensar que tudo ia ficar bem, mesmo sabendo do que eles são capaz. A gente ainda tinha aquela esperança que eles não seriam tão maus como eles foram.

ENTRE AS DUAS BACIAS

Entre as duas “bacias” do Congresso, tinha pessoas convidando para entrar para o STF, indicando o lado a ser seguido. Fui para o lado oposto, achei uma porta e desci por uma escadaria até chegar numa espécie de chapelaria. Eu queria carregar o celular e me sentei próxima a uma tomada e aproveitei para conversar com parentes para informar que estava tudo bem, que não se preocupassem.

No local, tinha muito vidro quebrado e os patriotas estavam varrendo e recolhendo, e impedindo que pessoas seguissem depredando o local. Cheguei a ver uma pessoa que subiu numa lixeira para quebrar as câmeras e os patriotas impediram a ação dessa pessoa vestida de preto.

Os próprios policiais do legislativo estavam acuados e nós fizemos um cordão para que saíssem de um ambiente de isolamento onde estavam, enquanto cantávamos o Hino Nacional. Eu acredito que eles estavam tão apreensivos quanto nós, pela presença de pessoas agressivas que supostamente já tinham passado por ali antes da nossa chegada.

DENTRO DE UMA RATOEIRA

Vi alguns patriotas subindo uma escada e voltarem correndo. Fiquei curiosa e fui conferir o que era. Uma multidão descia, mas insisti e subi. O que assustava era o embate que estava ocorrendo num espaço que creio ser o Salão Verde.  Estavam sendo jogadas bombas de gás de pimenta nos patriotas e eles se defendiam jogando água nos policiais. Eu atravessei o salão e fui para uma sala frente que tinha várias portas. Entrei numa das portas e vi que do outro lado estava tendo um embate também.

Creio que ali eram as salas de deputados e nem sei de qual entrei, mas ali dentro tinha em torno de 15 a 20 pessoas passando mal, entre idosos, crianças e adultos. Me desesperei vendo aquela cena, com muito gases de pimenta e eles passando mal. A única coisa que veio a minha mente foi arrancar as cortinas e fazer com elas uma corda para jogar do segundo andar para o térreo e remover aquelas pessoas pela janela. E com ajuda de algumas pessoas fizemos isso.

DENTRO DA COPA

Eu não saí do prédio, fiquei para encontrar a minha amiga que tinha descido comigo do QG. Fui atrás dela, mas antes de ir eu abri a geladeira de uma copa e peguei algumas águas para sair lá pelo Salão Verde. Encontrei minha amiga, mas o clima fora do prédio estava ainda muito tenso, com os helicópteros da federal passando.

Falei para a minha amiga que tinha encontrado uma copa e a convidei para ir até lá. Como ela fumava, tive a ideia de fazer um café. Eu sei que isso que conto denota muita inocência, mas passou pela minha cabeça que poderíamos fazer um café e relaxar um pouco.

Lá na copa separamos duas garrafas térmicas e ligamos a máquina. Enquanto preparávamos, com a porta trancada, escutamos bater e ao abrimos nos deparamos com três policiais legislativos, que nos orientaram a sair do prédio. “Aqui dentro não existem mais patriota, já tá tudo dominado”, disse um deles. Olhei para fora e vi uma multidão de patriotas lá fora, comentei e ele retrucou que lá fora era diferente.

DIRETO PARA A BOCA DO LEÃO

Largamos a máquina de café e saímos em direção à saída, mas ao invés de ir embora olhamos para o Plenário do Senado e vimos que estava com muitas pessoas, inclusive com a polícia legislativa sentada e a polícia militar ao fundo, de braço cruzado. Como o local estava tranquilo e seguro, então sentei numa das cadeiras de senador e comecei a fazer a live, enquanto carregava o celular. Duas horas depois recebi a voz de prisão.

Ficamos mais de 20 horas no subsolo junto com 37 pessoas que receberam voz de prisão no Senado. Nos dividiram em dois grupos. Pouco depois da 1 hora da madrugada participei da oitiva e pude ligar para a minha mãe avisando que seria presa, mas a minha ficha ainda não tinha caído. Como todos éramos réus primários, acreditei que logo seríamos liberados.

Fomos levados para o Parque da Cidade onde tem um departamento especializado em corpo delito, onde fizeram todo o protocolo, bateram nossas fotos e aí começaram as chacotas e a ordem para que tirássemos a bandeira do nosso pescoço e colocássemos na mochila. “Para onde vocês vão não irão precisar tão cedo da bandeira”, nos disseram.

214 DIAS TRANCADA NO PRESÍDIO

Entrei em desespero ao entrar no presídio e não conseguia parar de chorar. A agente policial foi muito humana comigo, perguntou porque eu estava chorando e falei que era pelos meus dois filhos, que dependiam de mim. Ela me disse que era para eu ficar calma e que tudo daria certo. Pediu para que eu tirasse a roupa, mas não ficou olhando como as outras agentes. Tirei e vesti o uniforme do presídio.

Demorei para entender que estava sendo presa de verdade. Achei que sairia em 15 dias, logo transformaram a nossa prisão provisória em preventiva de mais 90 dias e, depois, mais 90 dias. Fiquei sete meses.

COLCHÕES E COBERTAS NOVAS

Como o pessoal do presídio sabíamos que seríamos presas? Essa foi uma questão muito debatida entre nós no Colmeia, porque ao chegamos tudo estava nos aguardando naquele 9 de janeiro: colchões e cobertas novas que pegávamos de dentro de um saco ao passarmos em fila pelo corredor. E, ainda, a marmita que regularmente é entregue às 16 e 16h30 no Colmeia nos foi entregue às 19 horas da noite. Tudo estava muito bem organizado, que nos faz crer num planejamento antecipado, a exemplo do que ocorreu na Praça dos Três Poderes no dia anterior.

DOIS MESES SEM VER A FAMÍLIA

Fiquei dois meses sem ver a minha família, porque o cadastro era bem complicado de fazer. Só recebia informações por meio do advogado. Por 60 dias me neguei comer a comida da marmita e só me alimentava com suquinho, achocolatado, bolachas e frutas.

Quando percebi que meu corpo não aguentaria mais, comecei a engolir aquela comida. Nem o cachorro lá de casa come uma comida dessas, mas infelizmente para não adoecer, porque aí seria outro problema, comi aquilo.

O remédio para o meu problema renal, a minha família lutou por sete meses para me entregar, mas não conseguiu. Fiquei inchada, com retenção de líquido, e passei de 66 kg para 89 kg lá dentro. Puro inchaço. Além dos problemas renais (cálculo), tive infecção urinária.

ADVOGADO CONTA QUE MINHA FILHA ESTAVA GRÁVIDA

Quando o advogado me disse que a minha filha estava grávida de dois meses foi difícil demais de assimilar. Eu queria estar com ela, dar o suporte, porque a gente pode suportar tudo, mas a saudade da família é o que mais me matava.

A minha filha tem depressão e ela se mutilava, então foi um baque para mim saber que estava grávida, mas ao mesmo tempo senti um alívio no meu coração, porque a criança estava vindo naquele momento para aliviar um pouco toda a tensão da minha prisão. Meu medo era de que ela piorasse o quadro, mas ela casou e ficou muito bem. Eu ficava agradecendo a Deus por saber que ele cuidou dela.

O meu filho pequeno regrediu na escola, vivia calado. A minha mãe fez o aniversário dele de 6 anos e ele não sorriu em nenhuma das fotos. Ele não compreendia porque não podia me ver e a minha mãe inventou uma história de que eu ainda estava no QG. Porém, depois de muita pressão, de cobrar pelo menos uma vídeo chamada de onde eu estava, a minha mãe foi obrigada a contar a verdade e o processo de regressão na escola iniciou. Durante dois meses ele fez tratamento psicológico e melhorou. Porém, ele ouviu recentemente uma conversa minha com a mãe sobre o julgamento e ele pirou novamente.

SOBRE O FUTURO PRÓXIMO

Eu nunca fiquei muito preocupada com o julgamento, porque a fé me fortalece. Deus não vai deixar a gente perecer dentro dessa situação, mas acredito que a gente ainda vai passar por muitas situações difíceis. Dos homens eu não espero nada, porque o homem é falho; promete e não cumpre. Mas Deus fala e pode passar o tempo que for, mas a Palavra Dele não vai passar.

Se eu for olhar para as circunstâncias, eu estaria em cima de uma cama depressiva chorando. Eu trabalho desde os meus 17 anos e hoje eu me vejo dentro de casa, com várias restrições, sem poder ir a festas aniversários de amigos e parentes.

ANSIEDADE E PENSAMENTO SUICÍDA

Eu fiquei com crise de ansiedade, coisa que eu nunca tive até então. Passei dois meses sem dormir, em claro, vendo o dia amanhecer, de dezembro a 16 de janeiro, quando comecei a dormir novamente. Lá na cadeia eu só dormia com o medicamento, mas foi necessário desmamar. Nesse tempo sem dormir, cheguei a pensar em suicídio, mas tudo acabou se ajeitando com ajuda das pessoas da Igreja.”