EM CASA, COM OS TRAUMAS DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Ana Maria Cemin – escrito em 27/02/2023 e editado em 1/04/2024
Meu nome é Ana Maria Cemin e entrego para vocês um texto que me foi enviado por uma presa política dos atos do dia 8 de janeiro. Chegou para mim em 27 de fevereiro do ano passado e, quando li, os meus olhos marejaram e a garganta apertou. Mora “gente dentro de mim”, não tenho vergonha de ser autêntica, nem a minha entrevistada. Cumpro aqui a minha missão profissional e o convido a ler essas linhas traçadas a punho por uma senhora cujo nome, antecipo, não vou lhe contar. Mas aqui tem história, tem vida verdadeira!
“NINGUÉM ME CONTOU, EU VIVI”
“Depois que você vê os jovens saindo do Brasil, de sua pátria de origem, indo em busca de melhores condições de vida para si e suas famílias. Depois de abençoar o seu filho para seguir a sua vida, o seu propósito em terras distantes, bem longe de você, então aí você pensa em lutar por um Brasil melhor, na intenção de poder ver seu filho retornando um dia.
E foi tomada desse sentimento de patriotismo e civismo, despertado em meu peito pelo presidente Bolsonaro, que resolvi lutar e me unir aos milhões de brasileiros no manifesto pacífico e constitucional do dia 8/01/2023, a qual todos os cidadãos brasileiros tinham o direito garantido de se manifestar pela Constituição Federal.
Esse relato é sobre o fatídico dia 8/01/2023, quando todos nós, os acampados no QG do exército de Brasília, DF, nos unimos numa marcha de 8 km até a Praça dos Três Poderes, na intenção de chegarmos até os gramados e ali fazermos um grande círculo de mãos dadas em volta dos prédios.
Em meio a orações e louvores, pediríamos o código-fonte para esclarecer a possível fraude nas eleições de 2022. Éramos milhões de brasileiros patriotas e suas famílias. Estávamos ali na marcha, volto a repetir, pacífica. Éramos idosos, jovens, crianças, adolescentes, amputados, bebês, cadeirantes, deficientes físicos, autistas etc. Manifestávamos a paixão pelo nosso Brasil, a nossa pátria amada.
Estávamos lá por justiça, honradez e por nossa dignidade.
Infiltrados chegaram antes
Mas não foi isso que encontramos na Praça dos Três Poderes, pois ao chegarmos perto dos prédios logo vimos a degradação no interior, uma vez que os prédios eram de vidro. Havia, na linha de frente, alguns infiltrados usando verde-amarelo que incitavam o ódio e a violência, características essas de quem não é patriota.
Nossos patriotas tentaram dissuadi-los a não quebrar nada e a não entrar onde já estava tudo revirado e quebrado. Nesse momento, enquanto eu filmava com o meu celular, um rapaz me pediu um isqueiro emprestado para queimar uns panos enrolados que trazia consigo. Alguns patriotas vendo isso pediram a ele para não queimar nada, pois não era nosso objetivo promover desordem.
Óbvio que ninguém deu isqueiro a ele, mas constatamos mais tarde que ele o fez, pois vimos nos vídeos que ele ateou fogo numa lateral de um prédio.
Cenas de guerra, com bombas e sangue
A polícia federal nos encurralava com bombas de fumaça, nos obrigando a nos jogar no chão. Uma senhora tropeçou num carrinho de bebê, um amputado com prótese no joelho não conseguia correr. Era uma visão surreal, um filme de guerra, não condizia com a nossa realidade.
Vi quando uma bomba explodiu na cabeça de um jovem e tiraram sua camiseta para estancar o sangue que insistia em correr pelo seu corpo. Outra bomba explodiu quando um senhor foi chutá-la, levando junto a sua panturrilha. Fiquei paralisada vendo aquilo. Ele foi socorrido ali mesmo por outros patriotas.
Vi vários idosos tentando correr sem direção e nós parecíamos mais com bichos acuados, indo ao matadouro. A Polícia Federal nos confundia com as bombas que jogavam dos helicópteros e em várias direções. As bombas dos policiais eram jogadas por detrás dos prédios, pareciam que miravam apenas nos idosos e crianças.
Me sentei no gramado, chorando, orando, tentando entender o porquê daquilo tudo. Por que isso estava acontecendo? Por que nos tratavam com tamanha violência? Não tinha essa resposta. Depois de caminhar por 8 km com minhas dores habituais na lombar, joelhos e quadril, sentia-me fatigada pelo sol escaldante e ainda nos tratavam assim. Não! Nada poderia justificar aquilo.
O que eu não sabia é que poderia piorar muito!
Para voltar ao QG do exército, andei mais 8 km me arrastando e sendo ajudada por outros machucados. Logo fomos surpreendidos por uma barreira de militares do exército nos orientando a desocupar a Praça dos Cristais, onde estavam os acampados.
Disseram que podíamos ficar ali até às 7h do outro dia, 9 de janeiro, alegando que não poderiam mais nos proteger a partir daquele horário. A desesperança e o pânico tomaram conta de mim. Tratei de arrumar as minhas coisas: barraca desmontada, saco de dormir, colchonete, travesseiro e a mochila, de modo que fiquei em estado de alerta até o dia amanhecer.
Enquanto ajudava o pessoal do nosso ônibus a arrumar as suas coisas, vi pessoas desesperadas, não acreditando que teríamos que sair apressadamente.
Então, o segundo pesadelo começou
Fomos obrigados a entrar em ônibus que não eram os nossos (nos quais saímos de nossas cidades), com policiais fortemente armados nos conduzindo para o interior deles. Eram muitos ônibus estacionados e nós estávamos com medo de entrar.
Inclusive, muitas pessoas foram surpreendidas ao acordar e não puderam levar os seus pertences, como alimentos, remédios (a maioria de uso contínuo), produtos de higiene. Enfim, apenas saímos na correria do QG e fomos obrigados a entrar nos ônibus deles.
Ninguém, em momento algum, dirigiu a palavra a nós para explicar o porquê de entrarmos naqueles ônibus que não eram os nossos. Nenhum policial se reportou a nós dizendo para onde iríamos ser levados. Ali se caracterizou uma situação de guerra, pois éramos prisioneiros sendo sequestrados sem direito algum, sem voz de prisão.
No ônibus, vi patriotas em estado de choque, começando a passar mal, pois o pânico se instalava geral entre nós. Rodaram conosco por toda a cidade, o trânsito foi interrompido como se fosse um desfile.
Fomos escoltados por viaturas, carros de militares, motos da polícia federal, helicópteros sobrevoavam junto. Foi disponibilizado um arsenal de segurança do governo em minutos, como nunca se viu numa operação para subir os morros onde vão prender os traficantes.
Caímos numa emboscada
Naquele momento, percebemos que havíamos caído numa emboscada previamente planejada. Depois de um longo percurso percorrido, andando em círculo, nos deixaram no lugar reservado à Polícia Federal, onde pessoas passavam mal, desmaiavam, outras pediam para ir ao banheiro e eram escoltados por policiais.
Passadas algumas horas nesse lugar, presos dentro dos ônibus, fomos novamente escoltados por longo percurso até chegarmos ao Ginásio da Academia da Polícia Federal. Chegando lá passamos por uma revista minuciosa corporal e nas bagagens. Cachorros da polícia farejavam até mesmo as crianças. Estávamos cansados fisicamente e desesperados.
Novamente não nos foi dito qualquer palavra. Os mais idosos e cansados foram se jogando no chão para descansar. E desse jeito o dia passou e a noite chegou. Não havia mais lugar dentro do ginásio da academia, nem mesmo para caminhar entre as pessoas.
Eu e o grupo do ônibus ficamos do lado de fora, ao relento, e entre louvores e orações conseguimos atravessar aquela primeira noite até que o novo dia amanheceu. Foram horas intermináveis de fome, sede, choro, lamentações.
Patriotas começaram a passar mal e os enfermeiros estavam a muitos metros de distância da multidão, logo em frente da Polícia Federal, então a saída para pedir socorro era fazer uma corrente de vozes (ou melhor, gritos). Dizíamos “estão passando mal… estão passando mal” até a informação chegar aos ouvidos dos enfermeiros. Então, eles desciam caminhando e, alguns, reclamando, para só então chegarem ao doente.
De dia, passávamos fome e sede e, à noite, frio. Era a visão de um campo de concentração da gestapo, de Hitler, sim, numa versão dos dias atuais. Soubemos pelas mídias que estávamos lá por ordens do ministro Alexandre de Moraes e de Lula, o presidente.
Ao longo daqueles dias de pesadelo, eu vi dois jovens sofrerem ataque cardíaco e caírem duros no chão. Vi um jovem caído na grama com os pulsos cortados. Presenciamos muitos óbitos.
Horas intermináveis na fila de triagem
Numa daquelas tardes no Ginásio, fiquei mais de três horas numa fila que chamavam de “Triagem da Polícia Federal”. Eram dois milhares de pessoas naquele local e, sem sucesso, ao escurecer retornei ao grupo do meu ônibus para descansar, no relento.
Não fui chamada para a tal triagem. No outro dia, tudo de novo se repetia: sem comida, sem água, sem banho, sem remédios. Pela frente teríamos apenas o sol forte e a fila gigante. Não fosse um senhor de cabelos bem brancos me segurar, eu teria desmaiado no chão, em meio à fila.
Tive vários ataques de pânico e de choro compulsivo, até que numa manhã começaram a dar garrafinhas de água e um pãozinho. Na sequência, ganhamos um suco de caixinha e uma fruta. No decorrer da semana, ganhamos comida numa embalagem de isopor, com arroz e alguma coisa que era uma espécie de molho que não consegui identificar.
Não tínhamos como carregar o celular, pois a energia foi cortada e, quando a energia voltou, nos dividíamos em milhares de pessoas para carregar uns 30% ou 40% por cento, só para podermos falar com os nossos familiares.
Tortura emocional e psicológica
Como esses dois senhores, que citei anteriormente, pensaram e executaram muito bem a tortura emocional e psicológica! Eram poucos banheiros para milhares de pessoas naquele local. Muitas mulheres, mais jovens do que eu, estavam com seus filhos e, obviamente, eu as deixava passar na frente e, novamente, eu ficava sem banho.
Eu não aguentava mais o meu próprio cheiro. O sol quente, o suor durante o dia e ter que dormir quase um em cima do outro à noite! Então, na madrugada, eu ia no banheiro com uma toalha de rosto fazer minha higiene, mas sem sabonete, xampu ou desodorante. Abandonei os meus pertences para ajudar os colegas com os seus.
Um certo dia, um político, o senador Marcos Do Val, apareceu e falou alguma coisa para a multidão ao seu redor, dentro do ginásio. Logo nas primeiras palavras dele eu percebi que, mesmo sendo o único político a ir lá ver o que estava sendo feito conosco, ele estava lá para se promover politicamente. E, assim, o tempo foi passando. Íamos ajudando uns aos outros.
Cercados por urubus
Aos poucos, começaram a chegar os “urubus de preto”, os advogados que lá apareciam para disponibilizar os seus serviços. Foi só assim que ficamos sabendo que estávamos presos, teríamos que constituir um advogado para nossa defesa para podermos sair dali.
Caiu a nossa ficha, da forma como tudo aconteceu e por que estávamos lá. Éramos prisioneiros políticos de nosso próprio governo. Toda essa atrocidade, monstruosidade e crueldade era dispensada a nós porque queríamos o código-fonte.
Cada advogado fazia o seu preço para nos acompanhar na Audiência de Custódia, expressão desconhecida e nova para mim. Quem tinha um pouco de bateria em seu celular ia correndo falar com seus familiares amigos para ver o que era “audiência de custódia” e pedir que nos ajudassem.
Estávamos presos e precisávamos dos advogados mesmo não existindo um Boletim de Ocorrência (BO), uma voz de prisão e sequer um flagrante. Nem crime algum cometemos. Novo pânico se instalou entre nós. Éramos trabalhadores em férias, aposentados, crianças, jovens estudantes em férias.
E cadê o dinheiro para pagar o advogado? Pediam entre R$ 1.000,00 e R$ 50.000,00. Em meio a esse surto coletivo, acabamos assinando uma procuração para um advogado nos acompanhar na tal audiência.
Despenteada, sem banho há dias, na audiência
E o tempo foi passando, até que nosso advogado, o Sr. José Carlos, de Brasília, numa manhã nos reuniu e nos levou até o outro lado da rua, para o interrogatório da Polícia Federal. Só vi homens armados nos olhando, como se fôssemos bandidos perigosos, mas eu olhava ao redor e o que via eram idosos debilitados, pessoas com comorbidades visíveis.
Nem podia imaginar que o Brasil inteiro nos via pelas imagens das mídias e pela televisão. Entrei, então, pela primeira vez em minha vida como uma ré e sem qualquer direito.
E me perguntei: Há um lugar assim desse tipo para uma mãe de dois filhos adultos, avó, trabalhadora honesta que sempre pagou seus impostos em dia, mulher de vida e hábitos simples, terapeuta holística, profissional da saúde, reikiana, benzedeira, adepta a meditação há mais de 30 anos?
Sim, eu estou falando de mim mesma. Ali naquele corredor vi meus amigos colegas e patriotas de acampamento pela última vez, quando chegou a minha vez de ser ouvida e interrogada pelo delegado.
Eu estava constrangida por não ter penteado os cabelos, não ter tomado banho durante todos aqueles dias e por ter roupas íntimas sem lavar na mochila. Foi o máximo da humilhação e degradação humana para mim. A revista policial transcorreu assim, com os olhos marejados de ambas as partes, e faltou pouco para a policial me abraçar. O toque de suas mãos em meus ombros me acalentou.
Dali fui encaminhada à sala do interrogatório. Respondidas as perguntas e tirada a foto, me foi dito para esperar no corredor externo. Já passava do meio-dia e eu estava sem alimentação, tendo apenas uma garrafa com água.
Fiquei sentada à espera dos outros que entraram junto na Polícia Federal. Éramos em 49 naquele ônibus. A tarde passando e eu ali sozinha à espera nem sabia mais do quê. Ao meu lado, naquele corredor, se juntava a Comissão dos Direitos Humanos e do outro lado a Comissão da OAB. Ouvi quando um deles, da OAB, disse em voz alta “O Xandão nunca vai admitir esses óbitos”.
O corpo em choque muscular
Ouvir aquilo da OAB me deixou atônita e as minhas pernas não se mexeram mais. Fui ao auge da contratura muscular. Perdi o controle das pernas e do quadril. O tempo foi passando e ao final da tarde dois patriotas do mesmo ônibus foram liberados, de forma que agora éramos nós três, juntos na naquele corredor, durante aquelas intermináveis horas.
O nosso advogado apareceu e disse que seríamos levados pelo ônibus da PF para uma rodoviária interestadual, de onde deveríamos seguir para os nossos estados. Estávamos livres. De novo veio o pânico de entrar num ônibus e não saber o que fazer, mas era a nossa única saída.
Nesse ônibus da Polícia Federal, lotado de pessoas que haviam sido liberadas, fomos descarregados literalmente numa rodoviária sob o olhar de helicópteros, carros oficiais da PF e da mídia local.
Fomos largados a nossa própria sorte, abandonados e sem dinheiro, nem para um café. Percorremos os guichês em busca de passagem, mas sem dinheiro em mãos nada era possível.
Nessa situação de impotência, fomos abordados por duas pessoas, um homem e uma mulher, que nos viram e se apresentaram. Disseram que nos levariam para um abrigo, de um padre. Sem muita escolha, seguimos com eles.
Nos alimentaram e nos devolveram dignidade
Ao chegarmos no abrigo, numa cidade satélite, recebemos comida quente, café, banho quente e roupas limpas. Assim pude me sentir gente de novo. Abençoado café preto! Fomos tratados como seres humanos depois de tanto tempo, era a primeira vez desde o dia 9/01/2023. Essas pessoas não nos conheciam, mas eram solidárias.
Havia dentro delas patriotismo e civismo, a mesma motivação que nos levou até Brasília para o manifesto. Olhava ao redor e via que as pessoas resgatadas do campo de concentração mais pareciam zumbis: magras, com olheiras, olhos arregalados, olhar distante e sempre em lágrimas.
Ali, eu pude dormir em um colchonete e com travesseiro, pude carregar o telefone em 100%. O meu objetivo era sair dali e voltar para o meu estado e para minha cidade, onde todos estavam preocupados comigo, sem saber se eu estava viva ou morta.
Não sei dizer por quanto tempo fiquei nesse abrigo, mas um dia uma moça, uma alma abençoada que eu chamo de anjo da guarda, foi lá fazer doações e me reconheceu de algum vídeo feito no campo de concentração.
Ela se aproximou de mim, me tirou de lá e me levou para o seu lar, que ficava a cerca de 40 km deste abrigo do padre. Era um anjo de luz. Me acolheu sem sequer me conhecer, saber meu nome ou de onde eu vinha.
Me abrigou em seu lar sem questionar nada. Fiquei com ela o tempo que eu precisava para organizar os meus pensamentos, resgatar a minha estabilidade emocional para poder voltar com segurança para meu estado, minha cidade.
Hoje sigo a minha vida. Agora, vivendo um dia de cada vez. Tento ver o lado bom e humano das pessoas e, por outro lado, a cegueira de outras tantas.”
Lucia Helena Manzano Moreno
Eu vivi tudo isso, muito triste, não fui embora dia 09, vivi mais dois dias e dia 11 eu estava entrando na Colmeia ..
Todos sofremos, mas cada um com sua dor ..
Graças a Deus estou em casa. Porém de tornozeleira, sou restringida de trabalhar…
Não está fácil.. mas Deus proverá
giovani
a mesma basoseira do codigo fonte já liberado
Juliane de Guedes
Eu queria poder dizer que isso foi um pesadelo mas infelizmente, a dura realidade que aconteceu e marcou as pessoas.
Onde estão as imagens do dia 08.01?
Como explicar as pessoas que não tem o hábito de ler o montante de narrativas absurdas inventadas para esconder o que aconteceu de fato.
Juliane de Paula Guedes
Eu queria poder dizer que isso foi um pesadelo mas infelizmente, a dura realidade que aconteceu e marcou as pessoas.
Onde estão as imagens do dia 08.01?
Como explicar as pessoas que não tem o hábito de ler o montante de narrativas absurdas inventadas para esconder o que aconteceu de fato.
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