Texto: Ana Maria Cemin – Foto de capa: Eduardo F. S. Lima – 28/08/2024
“Hoje (27/8/2024) soube que desativaram a minha tornozeleira eletrônica por falta de sinal e corro o risco de ser presa. É tudo mentira! Cumpro todas as cautelares exigidas pelo STF e estou em casa fazendo um tratamento para sarar de uma bactéria no rosto. Tudo isso me deixou sem direção e estou pensando em fazer o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) proposto pelo Ministério Público, porque a cada dia tem uma surpresa, e fica difícil acreditar que o nosso País vai tomar um rumo diferente”.
Foi nesse tom de desespero que conheci a Talita Gabriela de Souza, 34 anos, mãe de três menores. Ela entrou em contato comigo ontem logo depois saber que a tornozeleira seria desligada, às 9h51, totalmente desnorteada, e assim foi durante todo o dia, até que as coisas se definiram com a entrada em cena da Dra. Taniéli Telles de Camargo Padoan para sua defesa.
Às 20h38, Talita mandou uma mensagem dizendo que aceitou fazer o ANPP por pressão, para evitar o recolhimento ao presídio, como ocorreu com outros presos políticos do Mato Grosso, em situação muito semelhante.
QUEM É TALITA POR ELA MESMA
“Me chamo Talita e sou moradora de Tangará da Serra, município localizado no interior do estado de MT. Sou mãe de Anna Klara, 14 anos, Hallanna, 7 anos, e Ayla Valentina, 4 anos. A confusão toda começou quando me senti motivada a participar das manifestações depois da eleição de Lula. Pedi afastamento da empresa em que trabalhava e segui para Brasília.
Cheguei na capital federal em 8 de novembro de 2023 e voltei par casa somente em 22 de dezembro. Vi nos noticiários, no dia do Natal, que algo bom estaria para acontecer referente às reivindicações que estávamos fazendo. Era como se o grande dia estaria para acontecer e, então, retornei a Brasília ainda no dia 25 de dezembro, em meu próprio carro.
O cenário que estava desenhado para os manifestantes descontentes com a eleição de Lula, vindo de inúmeras pessoas, era de que participaríamos de uma manifestação pacífica. Iríamos até a Praça dos Três Poderes e ficaríamos sentados, em protesto e mantendo as nossas reivindicações.
No dia 8 de janeiro, eu estava cozinhando no QG de Brasília e decidi permanecer com a turma da cozinha. Éramos todos voluntários. Inclusive estava na dúvida se devia acompanhar o movimento, porque eram 8 quilômetros de marcha entre o acampamento e a praça. E o ritmo seria dado por aquela multidão.
Acabei indo depois que servi a comida, por volta das 16h45, e fui de Uber. Ao chegar fui revistada e comecei a procurar as minhas amigas, inclusive liguei e mandei mensagens pelo celular, mas nada de conseguir encontrá-las.
Ingenuamente, achei incrível o que estava acontecendo na praça, isso até levar um tiro no pé.
Na minha cabeça, aquela confusão de bombas e tiros era fogos de artifícios sendo soltos em comemoração àquele momento. Fui em direção à praça toda faceira e chegando lá, quando me deparei com a verdadeira situação, já era tarde demais para recuar.
Não demorou e levei um tiro de borracha no pé e logo desmaiei com uma bomba de gás. Fui carregada até os bombeiros que ficavam próximo ao local e, de lá liguei para conhecidos de Brasília, que cediam seu banheiro diariamente para o banho no período em que fiquei acampada. Me levaram até a sua casa no dia 8 de janeiro, tomei um banho, me recuperei um pouco.
Este resgate foi muito importante para mim, estar com eles em segurança foi fundamental, mas eu estava em estado de choque e só queria saber se todos estavam bem. Eu queria encontrar as minhas amigas Simone Aparecida Tosato Dias e a Maria do Carmo da Silva, então voltei para o acampamento.
Ao chegar, o policiamento não queria me deixar entrar, mas dei um jeito e sai procurando por elas. Não as encontrei, porque tanto uma quanto outra foram se abrigar dentro do Palácio do Planalto durante o bombardeio e tiroteio da polícia contra os manifestantes.
Foi então que recebi uma ligação da polícia informando que a Maria do Carmo estava presa. Não dormi, só vomitava e o meu rosto queimava pelo efeito dos gases da Praça dos Três Poderes.
No dia seguinte, 9 de janeiro, o acampamento continuava cercado pela polícia e os policiais informaram que seríamos removidos do QG para um local onde fariam entrevistas conosco e logo seríamos liberados. De fato, fomos para lá, para este ginásio onde fiquei sem alimentação. Eu ainda tinha algumas bolachas e distribui para algumas pessoas, assim como distribuiu castanhas de caju.
O local estava tomado por pessoas passando mal e recordo que quando entrei no ônibus algo me tocou e voltei para barraca para pegar uma sacola com nove cobertores novos de doação. Lá no ginásio doei todos, inclusive o que eu usava, porque tinha muitos idosos passando mal e aquilo tudo me comoveu muito. Eu, particularmente, passei um dia e meio sem comer nada, passando mal e desesperada.
A última ligação que fiz do ginásio antes de ser presa foi para minha filha de 14 anos que na época tinha 13. Disse que iria ser presa e que no final ficaria tudo bem e que um dia voltaria para casa. Pedi a ela que cuidasse de suas irmãs e de seus avós.
Fiquei dois meses no cárcere, no Presídio Colmeia, em Brasília. Foram dias que pareciam uma eternidade, sem notícias das filhas e dos pais. Tive um ataque cardíaco lá dentro e fui levada ao hospital pelo SAMU. Fiquei 21 dias sem defecar ir aos pés e depois mais cinco dias sem urinar. Meu corpo não aceitava o que serviam na marmita.
Durante o tempo que fiquei presa, sempre tinha uma patriota em surto, em crise pela situação, e com o esforço de algumas se acalmavam. Estávamos em muitas mulheres num cubículo, muitas senhoras com comorbidades e sem tratamento.
Eu sempre doava o pão e o achocolatado que recebia para as mulheres que não conseguiam comer o que vinha na marmita. Era azeda e muitas vezes tinha bichos vivos ou cozidos. O que dava para aproveitar eram as frutas e as cascas.
Depois de dois meses voltei para Tangará com tornozeleira eletrônica e uma série de restrições à liberdade, que sigo à risca para não voltar ao presídio. Eu nunca tinha sentido tantas emoções negativas por algo como agora, que nos roubaram a liberdade.
Não é fácil viver nessas condições, mesmo estando em casa. Somos malvistos pela sociedade, que não conhece a nossa história. A própria mídia nos coloca como os piores vilões, como se tivéssemos depredado o nosso patrimônio público, o que não é verdade. Inúmeras vezes desejei morrer depois de viver tudo isso. A depressão se faz presente a cada dia que passa e, para lidar com isso, tomo Clonazepam e Zolpidem. É normal eu “apagar” tomando essas medicações.
As minhas amigas de quem falei anteriormente, por estarem se abrigando num prédio público para não se machucarem, foram presas e condenadas. Maria do Carmo foi condenada a 14 anos de prisão e está em cárcere domiciliar. O caso dela é gravíssimo, porque está muito doente. A Simone foi condenada a 13 anos e meio de prisão e está no autoexílio na Argentina, longe de sua família e de sua vida. Eu, como ainda posso fazer uma escolha, depois de ser informada que a minha tornozeleira foi desligada, decidi fazer o acordo com esse governo para não ter que enfrentar novamente o cárcere. Não tenho saúde para isso”.
DEPOIMENTO DA ADVOGADA TANIÉLI
“Talita me procurou em desespero, orientei a mesma em como proceder com relação à tornozeleira, visto que ela está na mesma situação de outros patriotas da sua região que foram presos. Ocorreu exatamente o mesmo problema de comunicação do GPS do equipamento com a central. Dezenas de tornozelados do estado do MT vivenciaram isso.
Ela me contou a situação desesperadora que enfrenta, a qual faz tratamento contra um Lupus, além de uma bactéria no rosto, é mãe de três menores, sendo uma de apenas 4 anos. Ela me questionou sobre o ANPP, demonstrou interesse. Assim, diante do requerimento dela, entrei em contato com a Procuradoria Geral da República (PGR) e vamos formalizar o acordo. Só estou no aguardo da documentação. Falei com a minha colega de luta, Dra. Marta Padovani, e decidimos auxiliar juridicamente ela até o fim de todo o procedimento. Vamos tentar excluir a multa por completo, diante da situação de vulnerabilidade econômica, a qual não possui qualquer rendimento. Após explicar o caso, a PGR colocou-se à disposição para analisar a documentação com cuidado. Acredito que iremos zerar a multa“, diz a advogada.
Parabéns à Talita pela decisão de assinar o ANPP, tirar logo essa tornozeleira e deixar de ser refém do sistema.
Parabéns a todos que optam por ser donos do próprio destino!