Ana Maria Cemin – 20/01/2025
Imagina você ser sequestrado no QG de Brasília e levado para o Campo de Concentração junto com mais de 2 mil pessoas no dia 09.01.2023, mas que, por sorte ou destino, você foi solto e voltou para casa, enquanto mais de 1,3 mil foram direto para os presídios.
Isso aconteceu com cerca de 700 a 750 pessoas após passarem pela triagem dos delegados de polícia nos dias 9 e 10 de janeiro de 2023. Elas foram ouvidas, cadastradas e dispensadas após assinarem um documento.
Esse benefício foi concedido por elas terem mais de 60 anos, serem acompanhantes de menores de idade ou terem graves comorbidades. Nem mesmo tiveram os seus celulares confiscados para que a Polícia Federal produzisse provas contra elas para depois serem julgadas como “golpistas” e condenadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Agora peço que imagine que, meses depois, ainda com os traumas do 8 de janeiro, você seja chamado para comparecer na Polícia Federal de seu município ou fazer uma videoconferência on-line com o delegado. Você não sabe, mas ele recebeu ordens de Brasília para interrogar você sobre o 8 de janeiro, a partir de um questionário previamente formulado e que, ao final, é preciso responder se aceita ou não o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), assumindo que estava disposto a fazer um golpe de estado junto com milhares de pessoas.
Esse terror está sendo vivido pelas mais de 700 pessoas que foram soltas naqueles dias na rodoviária do Plano Piloto de Brasília e arredores, muitas delas sem a menor condição de voltar para as suas cidades (veja ao final desta matéria um link sobre o socorro recebido por 400 delas de uma igreja local).
Quem nos fala sobre esse tema é a Dra. Mônica Amaral Gonçalves de Oliveira. Ela diz que nunca pensou, nos seus mais de 20 anos de advocacia, que o Brasil viveria uma situação dessa, com processos totalmente kafkianos, nos quais os réus não sabem por que ou de que estão sendo acusados.
Dra. Mônica, o que se pode dizer a respeito destas pessoas que foram soltas e voltaram para casa?
Todas estão sedo investigadas há pelo menos um ano e quatro meses e muitas nem mesmo sabem disso, porque os processos são físicos e só podem ser consultados presencialmente no STF. Muitas compareceram ao interrogatório na Polícia Federal e julgam que tudo ficou esclarecido. Elas nem imaginam o problema que ainda poderão enfrentar mais a frente.
Como é possível concluir que elas estão em investigação?
Elas receberam intimações para prestar esclarecimentos na Polícia Federal das suas cidades, por carta precatória. O interrogatório seguiu um modelo pré-definido em Brasília e os delegados regionais tiveram que perguntar, dentre outras coisas, se a pessoa teria interesse de firmar acordo se fosse proposto pela Procuradoria-Geral da União (PGR). Eu tenho um grupo de dez pessoas que está nessa situação de investigados e que foram liberados por questões humanitárias. Então posso afirmar que essa investigação é para nós, advogados, uma tortura porque não conseguimos saber como está o andamento do processo. Nada consta no sistema on-line do STF e somos obrigados a ir a sede do Supremo com um pen-drive ou um HD para fazer as cópias. Antes de copiar é necessário identificar as PETs onde eles são citados. E, literalmente, essas PETs, originárias dos inquéritos conduzidos pelo Ministro Alexandre de Moraes, vão dando filhotes onde são incluídos os investigados sendo preciso garimpar os nomes dos clientes em meio a milhares e milhares de páginas dos arquivos. É um trabalho dificílimo e me passa a impressão de que querem que a gente desista da defesa”.
Se a gente liga para a Polícia Federal ninguém dá informação, então a gente tenta um contato com a PGR (por ser a autora da ação penal) e ninguém dá informação. Tudo está concentrado no STF.
Na sua opinião, qual a gravidade dessas investigações e qual o seu conselho?
Há mais de ano iniciou a investigação dos meus assistidos, situação que tomamos conhecimento após o recebimento dessas intimações da PF. Falo para eles manterem uma certa discrição nas redes sociais para não produzirem “provas” para serem considerados “golpistas”. Digo para terem cuidado porque estamos sendo monitorados. E mesmo eles sendo discretos, penso que todos vão entrar no mínimo no Inquérito 4921, serão acusados de dois crimes e podem ser condenados. Na minha opinião, eles serão todos indiciados, só não sabemos quando.
Qual a razão da Senhora acreditar que tudo isso resultará em novos indiciamentos?
Os delegados regionais foram chamados a levantar material dessas pessoas em redes sociais e fazer o interrogatório com perguntas que já vinham prontas de Brasília: o que foram fazer em Brasília, quem pagou, quais meios utilizaram, onde ficaram, se foram à Esplanada, se quebraram alguma coisa, se entraram nos prédios e, por fim, se teria interesse em firmar o acordo de não persecução penal – ANPP.
Ou seja, nesses interrogatórios já existiu um juízo de valor de que a pessoa é culpada e que poderia fazer o ANPP para não ser processada. Num processo normal um delegado jamais poderia fazer esse tipo de pergunta, até porque não ocorreu indiciamento dessas pessoas. Diante de tudo isso, a orientação que dei aos meus assistidos é que permanecessem em silêncio.
Até pela experiência que tenho de dois aditamentos de Assistidas que passaram do Inquérito 4921 para o Inquérito 4922, a partir de fotos que tiraram no gramado da Praça dos Três Poderes quando os helicópteros jogavam bombas sobre os manifestantes. Isso é considerado materialidade para leva-las ao processo mais gravoso com uma possível condenação de 14 a 17 anos de prisão. Não importa que não tenham entrado em prédio, não importa que não tenham participado de atos de vandalismo.
E quanto aos seus casos que a Senhora acompanha e que já têm inquéritos, o que pode adiantar a respeito?
Tem um caso de uma senhora que teve o seu WhatsApp investigado e, a partir do cruzamento das conversas foi considerada uma psicopata golpista. Essa senhora de 59 anos, conforme consta nos autos, esteve em Brasília “com o intuito de violência, de destituir o governo”. E estas conclusões vieram de frases comuns, como “Vamos para Brasília, vamos lutar, pois é a hora do povo mostrar a sua força”, numa conversa de grupos de manifestações, mas o agente de polícia que traçou o perfil psicológico a sentenciou como uma golpista. E não se trata de um perito, mas apenas de um policial.
Essa pessoa que analisou o material afirma que a minha cliente tem um perfil saudosista do regime militar. Ela foi enquadrada no Inquérito 4922 e hoje vive em pânico, com medo de ser condenada a 14 ou 17 anos de prisão.
Uma outra assistida, moto taxista, igualmente foi incluída no Inq. 4922 por fotos no gramado, hoje passa por muitos problemas, inclusive financeiros, por não poder trabalhar à noite e nos finais de semana, pelas restrições impostas pelo STF. A renda caiu para 1/3.
Portanto, todos os casos são difíceis de lidar e nos causa o sentimento de impotência, por ver o Direito ser vilipendiado diariamente.
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