
Ana Maria Cemin – 11/02/2025
“Em todas as visitas que fiz, vi a minha irmã definhando. Adalgiza não vê mais sentido na vida, toma muita medicação controlada, come pouco porque a comida é muito ruim. Lá no presídio, ela sempre me abraçava e chorava muito, mas eu me mantinha forte na frente dela para passar força. Além de conversarmos muito também orávamos para afastar o pensamento suicida. Minha irmã passou a ter essa ideia fixa de autoextermínio desde que ocorreu o 8 de janeiro. Me contou que pede perdão a Deus por ter esse desejo e sente muita vergonha por ter essa fraqueza. E quando saio da visita, ela entra em desespero total”, relata Célia Regina de Souza Sales Santos, 64 anos.


Célia é a única pessoa da família que visita a presa política Adalgiza Maria Dourado, 65 anos, no Presídio Colmeia, em Brasília. É uma decisão da própria presa não autorizar outras pessoas por ter muita vergonha por ter caído na cilada de 8 de janeiro. Até pouco tempo as visitas aconteciam a cada 15 dias, porém o cadastro da visitante perdeu a validade, coisa que ela não sabia que aconteceria, e somente no dia 25 desse mês ela voltará a ver a sua irmã e levar um pouco de conforto.
A família de Adalgiza é grande; os pais eram do Morro do Chapéu, BA, e foram ajudar a construir Brasília, onde tiveram parte dos nove filhos. Adalgiza é uma das mais novas e é viúva, mãe de duas mulheres e tem quatro netas.




A única que tem acesso ao presídio é a Celia, mas está com o cadastro inativo. Claro que o advogado de defesa Luiz Felipe Pereira da Cunha faz as visitas regulares, sejam presenciais ou por vídeo, e ele faz questão de destacar que sua cliente está sendo dopada dentro do Colmeia.
“Minha irmã está sem se comunicar com a família desde o ano passado. Completou os 65 anos sozinha, em janeiro, e não teve um abraço ou uma visita. As filhas dela sofrem muito; uma só chora”, relata Célia.
CURA DO ALCOLISMO
“Adalgiza foi internada no instituto Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (FALE), para curar-se do alcoolismo. Isso foi há 5 anos e desde então ela mora nesse local situado no Recanto das Emas, em Brasília. De doente minha irmã passou a ser voluntária, e há anos cuida das pessoas do instituto, dando banho, alimentando e fazendo o que é necessário para humanizar a vida dessas pessoas”, conta Célia.



A FALE é mantida com doações e abriga famílias de soropositivos do HIV e outras pessoas que merecem atenção especial. O instituto virou o lar de Adalgiza. Além de cuidar de pessoas, ela tem contato com um veterinário voluntário que a ajuda a tratar de animais resgatados dos maus tratos que depois ela encaminha para adoção.
A Adalgiza estava em pleno trabalho quando a Polícia Federal bateu na FALE em 6.6.2024 e a levou presa, por determinação do Gabinete de Alexandre de Moraes, sob a justificativa de receio de fuga.




O fato é que Adalgiza utilizava a tornozeleira eletrônica há um ano e meio quando isso aconteceu, e seguia rigorosamente todas as cautelares exigidas. Nada pesava contra ela que justificasse ser levada naquele momento ao presídio.
Mesmo assim, Moraes ignorou os apelos da defesa da idosa pela manutenção da liberdade provisória durante o trâmite da ação penal. Desde então ela está afastada do local onde ela se curou e onde trabalhava voluntariamente. Está no Presídio Colmeia e, com o trânsito em julgado da sentença de 16 anos e meio, ela já cumpre a pena.



A IDA À PRAÇA DOS TRÊS PODERES EM 8 DE JANEIRO
Célia nos conta que a presa política saiu da instituição de caridade na manhã do dia 8 de janeiro e foi de ônibus para a Praça dos Três Poderes, sem avisar ninguém. Já na praça, Adalgiza ouvia barulhos estranhos, mas permaneceu no local até chegar a multidão vinda do QG, por volta das 14 horas.
“Ela já tinha decidido voltar para o Recanto das Emas, quando foi alvejada por um tiro com bala de borracha numa das coxas e, além disso, passou mal e ficou sem condições de respirar devido ao gás lançado pela polícia. Adalgiza, que tinha ido à manifestação somente com uma bandeirinha e uma garrafa de água, está hoje condenada como se fosse uma criminosa de alto risco para a sociedade brasileira”, lamenta a irmã da condenada.
Naquela situação de ataque aéreo a Adalgiza se abrigou nos prédios e viu que os próprios policiais nos helicópteros miravam suas armas nos vidros do prédio onde se encontrava. Os policiais estilhaçavam os vidros.
“Minha irmã estava machucada, passando mal e viu todo aquele horror. Contou que em dado momento se emocionou e falou bobagens, mas a gente precisa entender que o ambiente criado no 8 de janeiro confundia qualquer pessoa despreparada. Era algo inimaginável. Em dado momento ela pegou a tampa de um cinzeiro de metal e bateu contra umas catracas que tinha no prédio, porém isso não causou qualquer dano. Isso não pode ser o suficiente para prender uma mulher que sempre pagou imposto e é candanga (termo utilizado para as primeiras trabalhadoras que construíram Brasília)”, desabafa, em prantos, a irmã.
A DEFESA DE ADALGIZA
O advogado Luiz Felipe Pereira da Cunha tem lutado pela liberação da presa para tratamento domiciliar, apresentando laudos médicos que confirmam o risco de morte dentro do presídio. “No prontuário médico fica claro que ela está sendo dopada dentro do Colmeia”, diz o advogado, que recebeu por diversas vezes a negativa do ministro Moraes de prisão domiciliar.

De acordo com ele, na consulta feita por Adalgiza na Unidade Básica de Saúde com psiquiatra, em 22.8.2024, o médico solicitou à Polícia Penal vigilância rigorosa quanto ao risco de suicídio. Indicou, ainda, que a medicação receitada fosse supervisionada pela enfermagem.
“O médico relata que a paciente é chorosa, sofre crises de pânico desde que iniciou o uso de tornozeleira eletrônica em janeiro de 2023, evidencia desejo suicida desde que foi presa em junho de 2024, por meio de enforcamento”, relata Dr. Luiz Felipe, que tem em mãos o prontuário de saúde da idosa, que apresenta mais de 54 páginas.
Nesse mesmo dia, Adalgiza fez consulta na UBS com uma psicóloga e no prontuário consta que a paciente relata tristeza intensa e ansiedade, e afirma não dormir direito. O laudo se refere a pensamentos de morte, ideação suicida e planejamento (enforcamento), o que torna a letalidade da tentativa maior. Relata histórico de tentativa de suicídio aos 15 anos e que é sobrevivente do suicídio de dois tios. Portanto, a psicóloga deixa claro que o histórico de Adalgiza leva a crer que cumprirá com o suicídio planejado se não for tratada adequadamente.
De acordo com o advogado, no começo de outubro passado, em nova consulta em UBS, outro psiquiatra relatou que Adalgiza estava sem queixas psíquicas, que o sono estava preservado na medida do possível e que estava trabalhando dentro do presídio. Disse ainda que a presa negava sonolência excessiva e que parecia estar disposta e ativa. Com isso, suspendeu a medicação psiquiátrica supervisionada e escreveu que a partir daquele momento poderia manter com ela.
“A minha assistida está em situação vulnerável, pois ela declara a intenção de suicídio em todas as visitas que fazemos. Em agosto tivemos um diagnóstico real do estado de saúde mental dela, mas a consulta mais recente não aponta aquilo que a família percebe do comportamento da idosa, ou o que eu percebo. Sem um tratamento adequado nós temos o risco de morte iminente, por perda de interesse em viver”, relata Dr. Luiz Felipe.
O advogado enfatiza, ainda, ser impossível o quadro médico dela ter mudado tão rapidamente, de agosto a outubro. Até porque as condições de vida de Adalgiza permanecem as mesmas.
Questionado sobre palavras e atos que Adalgiza poderia ter cometido dentro do prédio em 8 de janeiro, Dr. Luiz Felipe diz que ao pegar uma tampa de cinzeiro e bater contra uma catraca não trouxe qualquer prejuízo ao patrimônio público. Ela tinha levado um tiro da coxa, sofrido com o gás, estava com o estado de ânimo alterado pelas circunstâncias. “E se fosse aplicar uma pena de vandalismo chegaria a 4 anos, no máximo. Então não caberia prender a idosa. No Artigo 163 do Código Penal está prevista pena de detenção de um a seis meses ou multa para quem destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”, informa.
Na avaliação do advogado essa deveria ser a pena máxima aplicada às pessoas que invadiram os prédios públicos no 8 de janeiro, diante da comprovação do ato de vandalismo e/ou depredação do patrimônio público.

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