Essa entrevista tem um tom diferente das outras que escrevi, porque a patriota que conta sua história tem vivência de política partidária, é filiada no PL, fez parte da executiva do partido e concorreu mais de uma vez a cargos públicos. Na última eleição, coordenou a campanha de um deputado federal que foi reeleito pelo seu estado. Ficou quatro meses no Presídio Colmeia por ter sido recolhida na manhã do dia 9 de janeiro no QG de Brasília, junto com mais de 2 mil pessoas. Detalhe: o seu ônibus chegou no QG da capital federal, vindo de sua cidade, às 19h30 do dia 8 de janeiro. Isso é facilmente comprovado, através do tacógrafo do ônibus e do celular da patriota que está com a Polícia Federal, mas parece não importar ao governo federal que ela nem ao menos estava no local de depredação. Espero que você goste dessa história de uma mulher forte de 42 anos, que tomou overdose de Rivotril no cárcere e que, por várias vezes, teve pensamentos suicidas lá dentro por estar impedida de ver seus filhos e demais familiares. Preservo a sua identidade e compartilho a sua história.
“Cheguei no QG de Brasília no domingo à noite, por volta das 19h30, quando as invasões e depredações já tinham ocorrido, mesmo assim fiquei longos quatro meses na capital federal e, em alguns momentos, pensei em acabar com a minha vida. O estacionamento de ônibus estava aberto no QG, sabíamos do ocorrido pelas redes sociais, mas entendemos que deveríamos concluir a nossa longa viagem e descansar. Só por volta das 21 horas os militares cruzaram dois tanques blindados impedindo a entrada ou saída do QG e nos diziam que seria perigoso sair dali porque a Polícia Federal poderia “nos pegar” e, então, diziam eles, teríamos que arcar com as consequências. O grupo da minha cidade considerou que estávamos seguros no QG por ser área militar e, se saíssemos, poderíamos lidar com algo desconhecido para nós: a ação da Polícia Federal. O melhor parecia mesmo seguir a orientação do exército que nos orientava a dormir e descansar da longa viagem.
Só não sabíamos que estaríamos sendo entregues aos lobos pelo exército brasileiro. Eu costumo comparar a experiência do QG naquela manhã do dia 9 de janeiro de 2023 ao Holocausto, porque do lado esquerdo tínhamos um cordão de soldados com cães e fortemente armados, nós no meio caminhando e no lado direito os ônibus alinhados como sendo a nossa única opção de transporte para sair do acampamento. Parecia uma cena de filme nazista, aquela em que os judeus entravam nos trens. Têm vários vídeos circulando nas mídias com o pessoal falando cedo na segunda-feira para que nos dirigíssemos ordeira e pacificamente para os ônibus e que não tínhamos motivo para nos preocupar, pois passaríamos por um cadastro e triagem, para depois sermos levados para uma rodoviária. Assim fizemos e acabou em cárcere e privação de liberdades que vigoram até hoje.
O EXÉRCITO IMPEDIU UMA TRAGÉDIA
“Só não houve uma tragédia, uma chacina dentro do QG de Brasília, porque o exército não deixou a polícia invadir. Eu tenho certeza de que só estou viva graças ao exército brasileiro e, digo mais, o ministro Alexandre de Moraes deu um tiro no pé com essa prisão de cerca de 1.500 pessoas, porque se ele tivesse dado 24 horas para evacuar o QG todo mundo teria ido embora. Ele decidiu juntar mais de mil pessoas desconhecidas, que nunca tinham se visto antes, 24 horas por dia juntas, criando um vínculo forte. Nós seguramos “as pontas” umas das outras lá dentro do presídio e Moraes nos deu a oportunidade de nos organizarmos como direita, e fez a gente ficar mais forte.
Hoje temos lideranças em várias partes do Brasil, alinhadas pelas conversas que tivemos lá dentro. As patriotas que foram presas na Esplanada contaram tudo o que aconteceu para nós que fomos sequestradas no QG, então fizemos uma boa troca de informações. Nós saímos de lá fortalecidas e fizemos algumas promessas para não deixar passar em vão todo esse aprendizado vindo do nosso sofrimento, portanto vamos continuar na nossa luta. Nós perdemos uma batalha, mas não a guerra.
PRIMEIRA REAÇÃO: REVOLTA
Eu fiquei os 15 primeiros dias em cela comum, no bloco 3, depois fui transferida para a Ala Alfa e, depois para a Ala Bravo do Presídio Colmeia. Lá na cela comum tinha oito camas e 13 patriotas, então eu dormia num colchão no chão ao lado do vaso sanitário, bem na porta da cela que tinha um vão embaixo, por onde passava muito vento. Para nos cobrir tínhamos uma cobertinha cinza bem fininha (que a gente compra para cachorros) e eu passei muito frio nos primeiros dias.
Eles não deixavam a gente entrar com as nossas roupas, porque não eram brancas, então muitas patriotas, como eu, ficaram uma semana com a mesma roupa que foi entregue na chegada, inclusive com a mesma calcinha. Nem banho tomei porque não tinha toalha para me secar. O que tinha na cela estava em meu corpo. Na segunda semana, as patriotas cujas famílias contrataram advogados ganharam kits de presidiárias (cobal) e me ajudavam com algumas peças de roupa e toalha. Só assim pude tomar o meu primeiro banho, gelado. Até então eu contava com a Defensoria Pública.
O fato de ficar sem banho e usar a mesma roupa por uma semana me fez sentir a pior das criaturas. Me senti impotente, humilhada e me revoltei. Como que uma mãe de família estava passando por aquela situação? Não era para eu estar ali, pois nem em Brasília eu estava quando ocorreu a depredação dos prédios da República! Mas, enfim, como nos disse o senador Magno Malta (PL-ES) lá no presídio: “Vocês não estão presas, presos estão eles lá fora que não podem ir até a esquina comprar um pãozinho na padaria. São rechaçados em qualquer lugar do mundo, porque têm brasileiros em todos os países. Eles não têm paz, não têm sossego. Vocês, meninas, estão guardadas. Vocês estão aqui no Presídio Colmeia por um propósito e lá na frente vocês vão entender”. E me apeguei às palavras do senador e eu acredito que nós vamos descobrir o porquê de ter vivido tudo isso, qual o propósito de tanta dor e humilhação. Ele sempre incentivava a gente por ser um pastor. Nos levava uma palavra de conforto.
103 MULHERES JUNTAS
Depois da cela comum fui para a Ala Alfa onde ficamos em 103 patriotas, num lugar que tinha capacidade para 33 pessoas. Eram 12 celas com treliche sem estrados e com o tempo aprendemos a fazer um treliçado para imitar um estrado e poder utilizar as camas. Tínhamos idosas, com idade acima de 70 anos, então elas continuavam no chão por ser mais difícil para elas. Os colchões eram espalhados onde tinha chão, inclusive corredor. Estávamos amontoadas.
O banho era complicado, porque era gelado. As senhoras com fibromialgia sentiam muita dor, ao ponto de sentirem choques. Era terrível assistir o sofrimento delas ao tomarem banho, mas nós, as mais jovens, tirávamos de letra porque passamos o Verão em Brasília, praticamente. À noite fazia muito frio e, logo nos primeiros dias, lá no chão da cela comum, me obriguei a pedir mais uma cobertinha para uma policial penal patriota.
Uma coisa que me chamou a atenção foi a presença de uma patriota com câncer no Colmeia. Ela não tinha um seio e no outro em que ela tinha uma prótese ela tinha caroços embaixo da pele. Essa senhora tem 65 anos e o câncer parecia estar de volta.
PRISÃO DE CACHORRO, UBER E MORADOR DE RUA
Antes de ser levada ao presídio, ainda no Ginásio da Polícia Federal, fui obrigada a assinar um documento de culpa com onze acusações, uma espécie de documento padronizado com espaço para preencher somente nome e data. Estas acusações diminuíram de onze para duas com o passar dos dias: associação criminosa e incitação ao crime. Vamos analisar isso: mesmo que eu tivesse cometido esses crimes, coisa que não cometi, a pena máxima seria de três anos e seis meses, ou seja, eu jamais deveria ter sido presa. O que o ministro fez foi me prender para depois me julgar, sem que nem ao menos eu tenha pisado na Praça dos Três Poderes. É surreal!
Fomos a Brasília com o propósito de fazer uma manifestação pacífica e ordeira na segunda-feira, dia 9 de janeiro, quando ficaríamos sentados no gramado. Em nossas manifestações sempre fomos ordeiros e organizados. Ficamos 70 dias contínuos com o nosso movimento de rua, em frente aos quartéis, e nunca tivemos problemas. Há quantos anos a direita se manifesta de forma exemplar? Desde 2016! Aprendemos a lidar com as invasões dos black bloc. Quando percebíamos a presença de infiltrados a gente se sentava e os infiltrados desapareciam. E, então, a gente nunca quebrou nada, nunca fizemos nada para envergonhar a direita. Sempre foi assim, tanto que a presença de mulheres, crianças e idosos era uma constante nas nossas manifestações.
Do QG fomos recolhidos ao Ginásio da Polícia Federal no dia 9 de janeiro. Até um cachorro foi preso com a gente no Ginásio, o que é surreal! Dentro do ônibus que nos levou do QG para o Ginásio tinha um rapaz que fazia Uber, deixando um casal no acampamento e o prenderam junto com os acampados. Outro caso incrível é do morador de rua que estava no acampamento para fazer as refeições, porque sempre tinha almoço, janta e café da manhã, tudo com doações. Ele foi preso conosco.
OVERDOSE NA CELA
Tenho dois filhos pequenos, menores de 12 anos, e ficar longe deles foi horrível. Perdi o aniversário do meu pai e da minha filha. Isso tudo me levou a ímpetos suicidas. Se eu perdesse o Dia das Mães eu não sei se eu não teria feito uma bobagem, eu não ia aguentar, por sorte sai uma semana antes. No cárcere fui encaminhada para psicóloga e médico, então passei a tomar clonazepam. No dia do aniversário da minha filha, em abril, tomei algumas gotas a mais para dormir rápido. Ao invés de 5 gotinhas que me foi prescrito eu tomei 50, então eu tive uma overdose acidental. Queria dormir para acabar com aquele sofrimento.
No Colmeia, não tínhamos atendimento médico, nem plantão. A gente só podia ficar doente de segunda a sexta-feira, mas só até 16 horas, quando tem enfermeiro no presídio. Nas noites, madrugadas, finais de semana e feriados não há atendimento. Eu tive essa overdose às 6h30 da manhã, hora do “confere”. Estávamos enfileiradas por cela, em ordem alfabética, bem arrumadas: lavadas, escovadas, uniformizadas.
Aqui cabe um detalhe: não tínhamos relógio para saber a hora e nós precisávamos nos levantar para esperar as carcereiras para a conferência, então era tudo muito intuitivo. E o fato de não ter relógio era grave para as mulheres que tomavam remédio controlado, de uso contínuo. O nosso parâmetro era o almoço e a janta, o que mais ou menos conseguíamos ter como referência de horário, fora isso era um “chute”. Pedimos um relógio de parede e até debocharam da gente: “Alguém tem algum compromisso agendado, por acaso?”. Conseguimos um e foi colocado na parede do lado de fora da grade.
VOLTANDO PARA A MINHA OVERDOSE
No aniversário da minha filha, acordei 6h20 como de costume, me arrumei e fui para o confere. Nisso, uma colega da cela ao lado olhou para mim e perguntou se eu estava bem e eu mal terminei de falar que estava bem e cai desmaiada nos braços dela. Fiquei desacordada por alguns minutos, com colegas de cela me socorrendo, e a policial que fazia conferência nem deu qualquer atenção, seguiu o seu trabalho como se nada tivesse acontecido. Por sorte, me recuperei bem. Me contaram que eu estava muito branca, com os lábios e as extremidades das mãos e dos pés roxos. Elas me abanaram, ergueram minhas pernas e aos poucos eu fui voltando.
Todas as vezes em que alguém passava mal, precisávamos bater muito forte na porta, além de bater muitas vezes. A porta era de ferro e tinha uma janelinha bem pequena. Um dia bati tanto naquela porta que chegou a estourar os vasinhos do meu pulso, porque eu dava socos na porta. Enfim, fazíamos isso para chamar a atenção delas e, quando vinham, abriam a janelinha só para nos dizer que não podiam fazer nada.
Em nossa cela, tinha uma patriota bem carequinha, em decorrência da quimioterapia. Ela tinha vencido o câncer, mas o cabelo não voltou e um linfedema no braço direito se manifestou na prisão. Nós passamos um apuro muito grande com ela, porque a gente tinha que colocar água gelada no braço, enrolando panos improvisados com camisetas e toalhas. Passávamos madrugadas nos revezando para molhar e manter o braço dela gelado, porque era a única forma de aliviar a dor. Só depois de 23 dias conseguiu atendimento médico.
TRATAMENTO PSICOLÓGICO
A pedido de minha advogada comecei atendimento psicológico no presídio, pois ela via que eu estava em depressão. Eu estava entrando em parafuso, mesmo sendo uma mulher forte, determinada e com espírito de liderança. Sempre fui guerreira, mas teve uma virada de chave lá dentro. O tratamento me ajudou a dormir, porque eu passei os primeiros 15/20 dias sem dormir de tanta ansiedade. Eu estava naquela cela para oito pessoas e estávamos em 13. Não tínhamos nenhuma privacidade para ir ao banheiro, pois é tudo apertado e aberto. Eu dormia com a cabeça praticamente no vaso, na porta, ou seja, tinha tudo para desencadear um processo psicológico. Além disso, nós fomos levadas para um lugar onde está a escória da sociedade, tudo que pessoas do bem repudiam, como maníacos homicidas, mulheres assassinas, pedófilas, corruptoras.
Eles dizem que os patriotas estão isolados dos criminosos, mas isso não é verdade na medida em que nos misturávamos com as criminosas quando íamos para o atendimento médico ou para a conversa com o advogado. Aliás, quando a gente tinha que sair para ir para qualquer lugar nós passávamos pelas galerias das demais presas. Então a gente sofreu muito humilhação. Quando o plantão era de policiais esquerdistas a gente sofria muito.
PRESAS EM GAIOLAS
Nas consultas com os advogados, por exemplo, nós éramos levadas para o que eles chamam de “corró”, que a gente pode chamar de curral ou gaiola. Ali nos misturávamos com as presas comuns esperando o horário do advogado. Às vezes passávamos trancadas uma manhã inteira, como bichos. Num desses dias conheci a história de uma corruptora de menores, mas a diretora do Colmeia, Kamila Célia Mendonça Rego, dava sempre essa desculpa de que estávamos isoladas em alas específicas para as autoridades, mas nós dizíamos para os deputados que nos visitavam que lá no curralzinho era todo mundo junto – patriotas e presas comuns. Numa ocasião, esqueceram três patriotas da nossa ala no corró. Subiram só às 20 horas tremendo de frio. A gente teve que aquecer as meninas com abraços, pois chegaram desesperadas com o frio e fome. Pior é que perderam a hora da janta e o café da manhã, pois entregam as duas refeições juntas.
LAVAGEM DE PORCOS
Depois de liberada a biblioteca, lia praticamente um livro a cada dois dias. Isso foi quando eu estava presa há mais ou menos dois meses. No mesmo período, liberaram o dinheiro que tínhamos quando fomos presas e usamos para amenizar a fome comprando, na cantina, minipizzas, esfihas e água. Isso nos ajudou naquele desespero todo, com todas nós morrendo de fome, nos alimentando mal com aquela lavagem de porcos que servem como refeição. Quando a comida servida não estava estragada, azeda, o arroz estava com gosto de mofado, ou tinha bicho, principalmente quando era quiabo. Os legumes eram as cascas e não os legumes em si. Então, eu era obrigada a comer casca de chuchu, de abobrinha, de cenoura, de beterraba.
Nós tínhamos fome, mas quando a gente abria a marmita e estava azeda não dava para comer. Lembro que numa ocasião praticamente a ala inteira, mais de 100 mulheres, empilhou as marmitas na porta da cela. Com isso, a diretora autorizou a darem um pacotinho de bolachinha do tipo água e sal para gente aplacar a fome. Um pacotinho pequeninho com três biscoitos. Aliás, os pacotinhos de biscoitos nós economizávamos muito. Era uma felicidade ganhar uma bolacha de água e sal, porque era a única saída para a fome num local em que só tínhamos aquela comida.
NUNCA RECEBEMOS 4 REFEIÇÕES POR DIA
A direção do presídio dizia que recebíamos quatro refeições por dia, o que era uma mentira. A gente não recebia nada de manhã até o meio-dia, quando nos entregavam a marmita do almoço e, depois, entre às 16h30 e 17h era entregue a outra marmita da janta e, junto, mandavam o café da manhã do outro dia (um achocolatado e um pão amassado). Às vezes vinha uma fruta, como banana. Num período vinha goiaba todos os dias e começamos a ter prisão de ventre. Quando vinha mamão, que é uma fruta mais delicada, chegava só casca e sementes, porque vinha todo esmagado. Eu até acho que eram as internas que pisavam nas frutas e pães, pois vinha tudo estragado. Um dia estava no corró esperando o meu advogado, e era bem quando a comida estava chegando, e vi os pães sobre as caixas de marmitas. Eles estavam fofinhos, perfeitos. Só que, quando chegaram na nossa ala naquele dia, os pães estavam completamente amassados.
Creio que é método de tortura, porque também costumavam nos deixar sentadas no chão quente no pátio, com as pernas cruzadas, com as mãos na cabeça ou mãos para trás, em pleno sol do meio-dia. Tinha mulheres que passavam mal, principalmente as idosas. A pressão era horrível, nós em pleno sol do meio-dia no Verão em Brasília tomando sol na cabeça, às vezes 20 minutos naquela posição. Quando reclamei para as autoridades que nos visitaram, a desculpa da diretora Kamila era de que nós precisávamos de vitamina D. Ela afirmava que nos obrigando a ficar naquela posição, naquele horário, estava fazendo um bem para a nossa saúde. Algumas patriotas acreditaram que a diretora era um amor de pessoa, mas a máscara da Kamila caiu cedo, para mim, e comecei a confrontar ela.
NIKOLAS E KLEITINHO PROIBIDOS DE GRAVAR
Fui eleita líder nas duas alas em que fiquei, porque o meu espírito de liderança é natural. Sempre que recebíamos uma autoridade era eu quem falava. Alguns eu conhecia, como os deputados Van Hatten (Novo-RS) e Sanderson (PL-RS), mas outros conheci lá dentro, como o deputado Nikolas (PL-MG) e senador Kleitinho (Republicanos-MG). Numa ocasião, os dois últimos que citei vieram gravar os nossos depoimentos. Eles pretendiam colher depoimentos de três mulheres de cada ala e eu fiquei responsável por escolher as da minha ala e me inclui entre elas.
Nos chamaram para uma sala de aula, nos colocaram no corró até eu ser chamada para ir até uma sala vazia, local onde fiz o meu depoimento de costas para a câmera. Inclusive tive que autorizar o uso da minha imagem e voz pelos legisladores. Falei alguns minutos e eles ficaram apavorados com tudo que eu contei. Quando saí, me colocaram de volta no corró com as outras mulheres que, até então, também dariam o depoimento. Nisso, eu ouvi uma gritaria muito grande na sala do lado e eu me escondi atrás das grades para escutar. Foi aí que eu vi a máscara da diretora Kamila cair, porque eu a vi ligando para a juíza da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, Leila Cury, desesperada. As palavras dela foram: “Eles estão gravando e se esses vídeos saírem daqui a casa vai cair. Vai dar ruim para nós. O que eu faço pelo amor de Deus? Eu preciso de tempo!”.
O que aconteceu depois eu imagino que foi a interferência da juíza nas gravações do deputado e do senador, porque as gravações pararam. Até aquele momento só eu e outra patriota tínhamos gravado e ficou por isso mesmo. De onde eu estava pude ouvir o deputado Nikolas batendo boca, brigando, argumentando com a diretora do presídio. Ouvi a diretora Kamila dizer que nós, a partir do momento em que entramos pela porta do presídio, não poderíamos mais decidir sobre nós mesmas, nos governar. “Elas estão sob a tutela do Estado e quem manda é o Estado. Vocês não têm autorização para gravarem depoimento de nenhuma delas e se vocês divulgarem esses dois depoimentos que vocês pegaram vai dar ruim para vocês”. Fiquei ouvindo eles brigarem e a coisa foi feia. Então, o deputado disse que se ele estava proibido de fazer as gravações, ele faria uma live do lado de fora do presídio denunciando-a por impedir o exercício da função de fiscalizar. De fato, fizeram uma live lá fora, pelo que fiquei sabendo.
No dia seguinte, eu indaguei a diretora sobre em qual momento eu tinha autorizado o Estado a responder por mim e questionei se eu já não mandava mais no meu corpo, na minha imagem, na minha voz. A resposta dela foi de que não tínhamos mais direito e que a nossa tutela estava com o Estado, pela nossa própria segurança. Depois disso, em várias situações, eu questionava outros assuntos e isso criou uma certa animosidade entre a diretora e eu, ao ponto de ela ameaçar de me jogar no isolamento. Por sorte não fez isso comigo!
Quando a gente percebia que a diretora estava mentindo para as autoridades que nos visitavam, em relação à comida, por exemplo, eu interrompia e dizia que ela estava faltando com a verdade e eu olhava para as colegas de cela e todas davam o ok, apoiando a minha fala.
VISITA DE ALEXANDRE DE MORAES
Quando o ministro Alexandre de Moraes esteve no Colmeia com a ministra Rosa Weber, como líder da minha ala fiz perguntas a ele, que elaboramos previamente em conjunto. A primeira informação que chegou a nós era de que uma autoridade muito importante nos visitaria e chegamos a pensar no Lula e ficamos desesperadas. Um policial muito querido, o Seu Marquinhos, que é uma trans, foi quem nos contou antecipadamente que era ele. Então chegou o momento de ele entrar na nossa cela para conferir as nossas condições, se a gente estava bem. Nós víamos no olhar do ministro a satisfação de ver mais de 100 mulheres na frente dele chorando. Mães, avós e filhas chorando. Ali naquela cela tinha mãe e filha presas juntas, sogra e nora, avó e neta.
Eu senti aquele prazer inenarrável do meu algoz a apenas 50 centímetros, pois só tinha uma grade nos separando. Entre 20 e 30 policiais federais fortemente armados, com uma espécie de fuzis com gás de pimenta, estavam posicionados atrás dele e, do lado, estava Rosa Weber. O meu primeiro pensamento foi voar no pescoço dele, arranhar a sua cara. Só que se eu fizesse isso com certeza levaria um tiro, então lembrei dos meus filhos na hora e continuei firme, fiz as perguntas para ele, então ele nos explicou a diferença de crime de natureza leve e natureza grave.
CRIME DE NATUREZA LEVE OU GRAVE, PELO MORAES
Nós fornecemos material de DNA e impressões digitais no Colmeia para fazer a varredura nos prédios da Esplanada e ver se a gente deixou vestígios. Segundo Alexandre de Moraes o simples fato de você ter entrado em prédio público no dia 8 de janeiro caracteriza crime de natureza leve. As pessoas cujas impressões digitais forem identificadas nos prédios ou por meio de filmagens quebrando algum patrimônio serão enquadradas em crime de natureza grave.
Após o ministro apresentar as suas definições, levantei o meu braço e disse: Senhor ministro, posso fazer uma pergunta? Então ele olhou para Rosa Weber, que acenou positivamente com a cabeça. Então me autorizou e fiz a seguinte pergunta: O senhor nos explicou a diferença do crime de natureza leve e natureza grave, e nós entendemos. Eu gostaria de saber sobre o meu caso, já que nem na cidade de Brasília eu estava quando ocorreu a depredação, uma vez que o ônibus chegou somente na noite do domingo. Ele olhou nos meus olhos cinicamente, sem mover um músculo do rosto, e disse: “esses com certeza serão todos absolvidos”.
Eu fiquei quatro meses no presídio, permaneço como presa domiciliar por usar a tornozeleira. De segunda a sexta-feira eu posso sair durante o dia para trabalhar, mas às 22h eu tenho que estar em casa. Nos finais de semana e feriados fico em prisão domiciliar nas 24 horas e, se eu atravessar a rua da minha casa, a tornozeleira emite um sinal lá na polícia federal, como se eu tivesse rompido o aparelho ou coisa assim. Três vezes ao dia tenho que carregar porque a bateria é uma porcaria. E o ministro me diz que com certeza serei absolvida de algo que eu nunca fiz. É o Brasil numa fase surreal! (a história dessa patriota segue em outro capítulo)