Ana Maria Cemin – Jornalista
13/10/2023 – (54) 99133 7567
Ela tem 38 anos e é uma presa política do mais severo inquérito de 8 de janeiro: o 4922. Contra os cerca de 250 presos políticos deste inquérito pesam acusações que já levaram à condenação oito pessoas, com penas de 12 a 17 anos. Nenhum foi absolvido e, também, não há qualquer prova contra eles. Isso causa uma série de questionamentos sobre o que está acontecendo em Brasília. Além do regime fechado a cumprir em presídio, pagarão 100 dias/multa, cada dia no valor de 1/3 do salário-mínimo e, juntos com os demais condenados, pagarão uma multa compartilhada de R$ 30 milhões. Acusações: Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito, Golpe de Estado, Dano Qualificado, Deterioração do Patrimônio Tombado e Ação Criminosa Armada.
Essa mulher que passou mais de sete meses no Presídio Colmeia é mãe de dois filhos: um de 2 anos e 10 meses e outro de 18 anos. Até ser presa dentro do Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro, ela gerenciava um restaurante de comidas japonesas. Tem na sua bagagem profissional a experiência de atuar com um renomado chef de cozinha, da sua cidade, mas acabou no segmento de sushi. O patrão e amigo proprietário do restaurante fez questão de recebê-la de volta no trabalho, após seu período no Presídio Colmeia, mas o uso de tornozeleira eletrônica inviabilizou a continuidade, uma vez que não pode trabalhar à noite e nem nos finais de semana.
Além do trabalho no restaurante, sempre fez extras para complementar a renda, em especial num buffet itinerante muito requintado que tem na cidade dela. Com a tornozeleira eletrônica, essa possibilidade de ir e vir em qualquer horário não existe mais, então o caminho foi trabalhar na fábrica de joias, a convite do amigo que é proprietário. Na fábrica, tem contato com outras dez pessoas, num ambiente sadio, e consegue a liberação em todas as segundas-feiras à tarde para comparecer no Fórum, seguindo às determinações da liberdade provisória determinada pelo Supremo Tribunal Federal. Está sendo muito bom para ela esse novo momento profissional, porque o filho de 18 anos trabalha no mesmo local.
É uma mulher que tem como prioridade os filhos e o trabalho. É muito ativa, dorme poucas horas por noite. Nos dias em que foi para o QG em frente ao quartel da sua cidade, muitas vezes nem dormia. Saía à meia-noite do restaurante e ia direto para o QG.
Tudo o que essa manifestante me contou é importante para que cada um de nós, brasileiros, possa reconhecer o Brasil de hoje, 2023. Então, vou dividir em duas partes o meu texto e esse é o primeiro.
A partir daqui ela “conversará direto com você”, contando uma história surreal da realidade nacional.
LUTAMOS CONTRA ESSE GOVERNO
Desde o momento em que o Lula foi solto da prisão, iniciou uma revolta na população porque começamos a ver que este é o país da injustiça, no qual o bandido fica solto. Quando ele veio a candidato a presidente, novamente retornamos o debate entre amigos e familiares sobre esse absurdo. Pior ainda quando teve a reviravolta do segundo turno das eleições de 2022, quando contra todas as possibilidades virou o jogo para ele ser eleito. A gente sentiu que aquilo foi uma armação, não teria como virar a favor dele. Os brasileiros estavam dormindo e de repente acordaram, foram votar e deu Lula? Então a gente foi para as ruas cobrar transparência: se Lula foi vitorioso, vamos comprovar isso. Era o que precisávamos saber.
Eu sou contra esse governo. Nunca fui a favor do PT e isso é desde novinha. Via o Lula na TV e eu falava para a minha mãe: Eu não gosto desse homem. As ruas deram vazão a nossa vontade de nos manifestar, era o local certo para mostrar a nossa indignação contra tudo de errado que o PT já tinha feito no Brasil e tudo que iria fazer com o novo governo, como a gente está assistindo agora. Lá em frente dos quartéis, voltou forte o nosso patriotismo, que a gente guardava em nosso peito desde criança. É impossível ouvir o Hino Nacional e não chorar. Era impossível estar na frente dos quartéis, ver as pessoas vestidas de verde/amarelo, sacudindo as bandeiras debaixo de sol quente e chuva, segurando a sua barraca para não voar, e não se emocionar. A gente não fez nada de mal a ninguém, o pedido pela transparência está previsto na Constituição.
CHEGADA EM BRASÍLIA NA TARDE DE SÁBADO
Saímos da nossa cidade no dia 6, em ônibus, e chegamos no QG em Brasília às 14 horas do dia 7, sábado. Logo iniciamos a montagem da barraca e, inclusive, armamos a nossa própria cozinha, pois levamos alimentos. Só no início da madrugada do dia 8 consegui tomar banho e fui dormir. Ao acordar, vi uma movimentação estranha no QG com o pessoal dizendo que era para descer para a Praça dos Três Poderes, diferente do combinado, que era segunda-feira.
Por volta das 11 horas da manhã começou a caminhada com a presença de cerca de 3 mil pessoas, mas nós ainda ficamos no QG, almoçamos tranquilamente. Ouvíamos o pessoal no caminhão de som falando para descer e eu não sabia nem mesmo para qual lado.
Como cheguei em Brasília de ônibus, não prestei muita atenção por onde entramos e não teria como me situar, pois a cidade era desconhecida para mim. A única coisa que restou foi seguir a marcha anunciada, coisa que fizemos às 14 horas. Chegamos à Praça dos Três Poderes por volta das 15h30 ou 16 horas, mas antes passamos por um cordão gigantesco de policiais militares que pareciam suspeitar de tudo. Revistaram e tiraram tudo que podiam da gente. Ficaram com o meu isqueiro e com a pinça de arrancar pelos da minha amiga.
NA PRAÇA, SEM CONDIÇÕES DE RECUAR
A chegada na praça foi assustadora, pois via gente muito bem equipada com máscaras específicas para proteção a bombas de gás. E não demorou muito para uma bomba caseira explodir ao meu lado, e a gente não tinha como recuar dessa cena de guerra. Eram bombas lançadas por helicóptero e a polícia dando tiros com balas de borracha. Até os próprios manifestantes jogavam bombas, como aquela caseira da qual falei. Também era impossível saber se quem fez isso era um patriota ou era infiltrado. Não tinha como distinguir. Como saber quem era quem naquele momento? Aliás, era incompreensível, porque quem desceu em marcha desde o QG foi revistado. De onde saiu aquela gente equipada com machadinho, pau, barra de ferro e máscaras? Também levei um tiro com bala de borracha no pé direito que doeu muito, fiquei mancando por um bom tempo. Tentei ir para debaixo da rampa para me proteger, mas lá também era um local que estava sendo atacado pelos policiais. A única saída foi subir a rampa de um dos prédios.
TRATADOS COMO BARATAS
O que aconteceu com a gente foi uma loucura. É como se fôssemos baratas tontas que a gente tenta colocar no canto para poder pegar. Foi isso que fizeram conosco. Na praça, corríamos de um lado para o outro para fugir das bombas e aí veio aquela barricada que impediu de a gente sair. Eles jogaram bombas de efeito moral e todo mundo perdeu os sentidos e logo a Tropa de Choque entrou no prédio para dar voz de prisão.
Eu entrei num prédio e só fiquei sabendo que era o Palácio do Planalto quando me disseram na Delegacia da Polícia Civil, depois de ser presa, junto com mais cerca de 150 pessoas. Eu não queria subir a rampa, mas eu estava assustada com as bombas e o tiro que levei no pé. As portas estavam abertas e fomos entrando. Tudo foi rápido demais e ainda tivemos que assistir uma briga entre a Tropa de Choque, que estava sendo muito agressiva, e os militares que diziam que era para parar as agressões, pois já estávamos rendidos no chão.
NA RAMPA, DIREITA OU ESQUERDA?
Voltando sobre as decisões que precisei tomar. Não havia outra saída a não ser subir a rampa. Subi e quando cheguei vi um saguão de entrada do lado esquerdo e outro do lado direito. Do lado direito, bem na frente da rampa, vi que tinha muito caco de vidro no chão, que não sei se eram da porta ou da janela. Não sei relatar. Era um momento de susto, meus olhos lacrimejavam, meu rosto ardia por estar exposto ao gás das bombas.
Então, olhei para o lado direito e vi que as cadeiras estavam reviradas e o chão estava molhado. Do lado esquerdo, vi as cadeiras normais e fui para lá. É possível ver nos vídeos as pessoas sentadas nas cadeiras nesse momento, tentando se acalmar. Fiquei nesse saguão até que todo mundo começou a sair, porque chegou um soldado do exército pedindo para que fôssemos embora. Eu olhei para o soldado e falei: Quem me garante que ao descer a rampa eu não serei presa? Ele ignorou o que eu disse e continuou chamando o pessoal para sair do prédio.
Não sei qual foi o fim dessas pessoas, se foram presas, porque naquele momento eu vi o filho de um amigo nosso (que tinha ido no mesmo ônibus) passar e ele tem autismo. O pai do garoto tinha me pedido para ficar de olho no rapaz de 19 anos, porque ele tem mais idade e não estava caminhando no mesmo ritmo que a gente na marcha, descendo para a praça. Então fui atrás dele, nesse lado onde tudo estava destruído, e foi nessa hora que começou a barricada na porta, de forma que não era mais possível sair do Planalto.
NOVA EXPLOSÃO DE BOMBA ME DESNORTEIA
No que me aproximei da barricada, escutei o barulho de uma bomba e sei que foi muito próxima a mim. Eu fiquei completamente desnorteada, perdi os sentidos, bati a cara no espelho. Eu olhei aquela claridade e achei que fosse uma saída. Eu estava muito mal para discernir devido ao gás, por isso bati o meu rosto.
Jogaram uma bomba de efeito moral e todos os que estavam ali do lado direito acabaram sofrendo as consequências, como vômitos e dificuldades sérias para respirar. Aos gritos, a Tropa de Choque mandou que todos nós nos deitássemos no chão e eu me deitei sobre o vômito de outras pessoas. Logo iniciaram as agressões verbais, físicas e tortura psicológica. “Patriotas meu ovo!”, gritavam, entre outras frases com palavrões pesados que não vale a pena citar. Os mais brandos foram: Bandidos! Terroristas! Hipócritas! Só de resgatar isso da minha memória me causa repulsa.
Teve momentos bem complicados para todos nós, quando o sargento da Tropa de Choque começou a pisar e chutar as nossas bandeiras do Brasil. Fiquei com vontade de puxar a perna dele e o derrubar no chão. Por sorte não fiz isso, porque poderia ter levado um tiro no meio da cabeça. Como pode um homem que jura defender a pátria fazer aquilo com a nossa bandeira, contra o próprio povo? A bandeira é um símbolo sagrado da nossa Nação!
QUEM MANDA AQUI É A TROPA DE CHOQUE, PORRA!
Foi muito assustador sentir os policiais perto da gente, com armas apontadas para nós e, ainda, xingando: Você é uma bandida! Você é uma vagabunda! Isso foi dito inclusive para idosas, enquanto apontavam as armas na cabeça delas. Quando um dos policiais apontou a arma e gritou com uma das meninas para que calasse a boca e não olhasse para ele, ela enfrentou: Atira! Eu prefiro morrer do que ver um policial fardado pisando na bandeira e apontando a arma para um patriota. Você prefere bater continência para bandido. Eu prefiro morrer do que ver isso. Nessa hora ela estava de joelho com as mãos para frente, completamente indefesa. Foi chocante ver tudo acontecendo e não podermos fazer nada.
Toda aquela pressão, misturada com o medo e o efeito do gás, fez com que muitos fizessem suas necessidades nas calças; sem contar as pessoas passando muito mal. Nos proibiram de chorar, então era sufocante estar ali. Não era possível pedir socorro, pois estávamos diante de policiais. Eu via pessoas com a cabeça sangrando e não podia socorrer. A Tropa de Choque parecia estar fazendo um exibicionismo e gritava: Quem manda aqui é a Tropa de Choque, porra!”
O relato dessa patriota segue em outra matéria: 9 DE JANEIRO: DE VÍTIMAS, PASSAMOS A BANDIDOS NUM PISCAR DE OLHOS, que será publicada no blog www.bureaucom.com.br.