Ana Maria Cemin – Jornalista – 15/04/2024
No dia 7 de janeiro, ele saiu de carro com amigos do QG do Farol em Maceió, AL, para acampar no QG de Brasília, por ter a convicção que as Forças Armadas tinham uma resposta sobre o código fonte das urnas eletrônicas.
Foi com uma ilusão de viver esse dia maravilhoso na capital federal que ele se aventurou a sair de sua cidade.
A democracia no Brasil não estava nada bem e ele tinha cansado de ficar parado, enquanto o Brasil era entregue a políticos que não trabalham pelo povo e só sabem cobrar impostos.
O alagoano chegou em Brasília com os amigos no dia 8 de janeiro, armaram a barraca e foram para a loja Leroy Merlin comprar o que faltava para a deixar mais confortável. Foi no caixa da loja que eles souberam o que estava acontecendo na Praça dos Três Poderes.
Isso era em torno das 16h, então eles decidiram ir direto para o local e conferir de perto.
Na Esplanada, escolheram entrar pela lateral do Ministério da Justiça e logo chegaram no cenário de guerra onde avistaram os três helicópteros sobrevoando a área, de onde saiam tiros e bombas contra as pessoas. Os tiros também vinham por terra.
José Leonaldo dos Santos Silva, 51 anos, que serviu no quartel do Exército em Maceió de 1991 a 1997, não ficou indiferente ao terror que assistia. As pessoas choravam e ele observava na praça crianças com mães sendo alvejadas. Muitos corriam de um lado para o outro, entravam em prédios na tentativa de fugir do ataque.
O gás de pimenta estava por todo lado e, vestido com a jaqueta do exército que levara consigo, gritava com veemência contra os soldados que atacavam mulheres e crianças. Porém, não era ouvido e sentiu a sua barriga ser ferida por uma bala de borracha.
José lembra que os policiais federais começaram a pedir para que a população sentasse na grama, mas ele dizia para não fazerem isso, porque facilitaria a prisão. Seria como uma rendição de algo que não estavam fazendo.
Atormentados e vendo a situação cada vez mais perigosa, ele e os amigos saíram do campo de guerra e foram para o acampamento.
FICAR NO QG PARECIA SEGURO
Ao chegarem no QG, José e os amigos assistiram o confronto com balas de borracha e gás de pimenta entre os militares, que guardavam o QG dos patriotas, e a polícia que queria invadir. Isso deu a entender que o exército garantiria a sua segurança e que, se os manifestantes saíssem do QG, a polícia os pegaria.
Na madrugada, por volta de 1h, um grupo de militares à paisana entrou no QG e avisou para saírem do local porque todos seriam presos no amanhecer. Um deles reconheceu José, por ter servido com ele em Maceió, e reforçou o alerta.
Foi uma madrugada confusa, porque ao mesmo tempo que a informação de risco chegava, muitos ônibus de fora de Brasília estacionavam nos arredores para a chegada de patriotas de várias partes do Brasil. Tinha quem afirmasse que aqueles policiais eram infiltrados querendo confundir os acampados.
SAÍDA DO QG EM ÔNIBUS
Os alagoanos permaneceram no acampamento e quando tentaram sair pela manhã o QG estava cercado pelos militares. A polícia entrou fazendo uma linha de evacuação dos patriotas, empurrando todos em direção aos ônibus. Não havia opção e foram obrigados a entrar, por bem ou por mal, nos veículos oferecidos pelo governo federal.
Um militar falava no megafone que seriam conduzidos à PF para fazer um registro e, ao terminar essa “triagem”, todos poderiam seguir para suas cidades. José percebeu que a coisa não era bem assim e, por volta das 11 horas, quando já estava no Ginásio da Polícia Federal, ao tentar falar com um dos policiais este o mandou calar a boca, afirmando que “preso não tinha direito à voz”.
O que ele pedia era banheiro para as mulheres, pois elas precisavam com urgência após longas horas circulando dentro dos veículos por Brasília. Indignado, José enfrentou o recruta e mostrou a sua patente de 3º sargento exigindo respeito que é dado a todo militar, estando ou não em reserva. Nisso apareceu um coronel que estava à frente da operação, foi informado da necessidade das pessoas, e logo iniciou a formação de duas filas, uma para mulheres e outras para homens.
DOENÇAS E CONDIÇÕES INSALUBRES
José é diabético, então carrega consigo uma sacolinha com os remédios, além de não poder ficar longas horas sem alimentação. Já passava das 13h do dia 9 de janeiro e ninguém tinha oferecido alimento à multidão de mais de 2 mil pessoas. Ele olhava para os lados e via crianças chorando, idosos e cachorros, além de uma multidão desesperada vivendo uma realidade absurda.
Ele lembra de ver uma senhora de aproximadamente 75 anos morrer ali no ginásio. Teve uma parada cardíaca confirmada pelos bombeiros. Ele conta que quando as pessoas passavam mal, eles não faziam questão de correr para salvar as vidas, mas andavam normalmente, com uma certa indiferença. Eram bombeiros no mínimo despreparados, na opinião dele.
Na hora da “triagem”, ainda com a expectativa de voltar logo para Maceió, José foi para a fila das pessoas com comorbidades. Até então nem imaginava a possibilidade de estar preso desde a saída do QG, pensamento que mudou ao entrar na sala da delegada federal e iniciar o procedimento. Antes de tudo começar, José ligou para o advogado que o orientou a não falar, exigindo o direito a ficar calado, e também disse para não entregar o seu celular. Depois que desligou, pegaram o celular do José e a delegada disse que procederia a voz de prisão, independente dele falar ou não. E assim foi.
CORPO DELITO
À 1h30 de 10 de janeiro, José se viu nu na frente do médico que fazia o exame de corpo delito, na frente de policiais mulheres. Detalhe: o médico não registrou o machucado do tiro de bala de borracha que levou na barriga. De lá, foi levado ao Presídio Papuda, sabendo de antemão que todos os patriotas ficariam juntos, isolados dos presos comuns, num pavilhão recém reformado.
Novamente ficou nu na frente de policiais homens e mulheres no ritual de entrada no presídio. Nesse momento, José se comoveu com a situação do patriota Abdias Joaquim dos Reis, de 57 anos, que estava ainda se recuperando de um câncer de próstata, portanto usava fraldão e naquele dia estava todo ensanguentado. Sua ferida estava aberta! Mesmo naquela situação foi obrigado a tirar a roupa e agachar três vezes, como todos os demais. Depois, ainda nus, foram obrigados a virar para a parede e ali ficar por um bom tempo.
CELA 6 B
A tontura por falta de alimentação tomou conta de José, que também sentia muito frio, mas ele lembra nitidamente a chegada na cela 6B: o local era pequeno para os 20 patriotas colocados lá dentro, tinha apenas quatro beliches, dois de cada lado, o que acomodaria oito pessoas. Tinha, ainda, uma pia, um chuveiro e um vaso no local, tudo aberto, sem qualquer privacidade. Com a passagem dos dias, também descobriu que ficariam molhados em dias de chuva, porque a cela era vazada e a água entrava sobre os beliches.
Por três semanas, José e os demais presos da cela não saíram para o pátio e quando começaram as saídas eram obrigados a sentar no chão quente do meio dia. Se chovesse, tinham que suportar a chuva na cabeça. Não demorou muito para que a saúde dos patriotas fosse afetada e bastava um nariz escorrendo, uma garganta arranhando ou um espirro para que a cela inteira ficasse sem direito ao sol por 15 dias.
Não havia remédio lá dentro, a não ser dipirona ou ibuprofeno. O primeiro gerente do pátio da temporada de prisão dos patriotas, revelando-se um carrasco, avisava para que não ficassem doentes porque não teriam muita ajuda: “Vocês sabem a cor da bandeira daqui (referindo-se à cor vermelha da esquerda), então não fiquem doentes”. Debochava sem limites. José conta que havia uma série de formas de tortura no Papuda, como por exemplo, se eles orassem ou cantassem dentro das celas eles eram reprimidos com a ameaça de não poder ir para o pátio na hora do sol. Ele ficou um mês e meio nessa cela.
CELA A2
Então ele foi transferido para uma ela onde ficaram em 13 presos políticos, com quatro beliches e oitos colchões. Os demais ficavam em colhões colocados no chão. Lençol era problema e só usavam uma manta fina que provocava rinite e, José que era alérgico, passou um mês com nariz inchado, sem conseguir respirar e, portanto, dormir.
José estava na cela ao lado do preso político Dr. Frederico Rosário Fusco Pessoa de Oliveira, médico que ele considera merecedor de prêmio pela ajuda prestada aos colegas de prisão. “Ele atuava como alguém que fazia milagres lá dentro, representando Jesus entre nós”, diz José.
“Lembro que num dos dias, um preso político chamado Barreto teve um surto e começou a se jogar contra a porta para se ferir, ao ponto de cortar o seu supercílio e ficar com a boca toda inchada. Ele estava deprimido, e gente percebia no pátio porque ele andava com o corpo curvado. Mas não era só ele, porque tinha um rapaz desmaiado na nossa ala de celas e o policial penal foi até o Dr. Frederico para que ele fosse socorrer o rapaz que, pelo que falaram estava com uma bala alojada nas costas. O Dr. Frederico não tinha recursos e mesmo assim fazia o que podia para socorrer os dois: para o primeiro deu um remédio que acalmou o depressivo, que acabou dormindo, para depois cuidar do outro caso. Era comum o Dr. Frederico cuidar do Abdias aquele preso do qual comentei que tinha passado por uma cirurgia de próstata. Ele desmaiava, ficava todo amarelo, e ele cuidava dele até se recuperar”, relata.
RECOMEÇO DE VIDA
“Ao viver tudo isso descobri que meus amigos não são meus amigos, que meu casamento de 32 anos ruiu porque a minha ex-esposa ficou descontente comigo por causa da política. Conto com a ajuda a Associação dos Familiares das Vítimas de 8 de janeiro (ASFAV) e da minha filha Letícia (24 anos) e de meu neto Raphael (7 anos). Estou recomeçando a minha vida profissional de representante de planos de saúde e seguro de carros, depois de perder meu escritório de representação por ficar quatro meses preso. Mantenho meu CNPJ e consegui montar uma pequena equipe de vendas, mas ainda enfrento as limitações impostas pelo uso da tornozeleira eletrônica e demais cautelares impostas para a minha saída do presídio. Não aceitei o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), porque não fiz nada de errado para merecer tudo que sofri em Brasília e ainda sofro. Considero errado admitir uma culpa de algo que não fiz”, conclui.
José é um dos mais de 1.000 presos políticos que aguardam o julgamento, após serem presos no QG em 9 de janeiro de 2023, investigados no inquérito 4921. Até hoje, 15 de abril de 2024, nenhum deles teve julgamento marcado pelo STF. A sentença é uma incógnita. Outros presos políticos, do inquérito 4922, estão em julgamento e suas penas estão entre 14 e 17 anos de prisão, em sua maioria. Cerca de 150 homens e mulheres, dentre eles idosos, tiveram seu destino traçado pelos ministros do STF.
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