Por Ana Maria Cemin – Jornalista
Reeditado em 12/02/2024
Desculpa a ironia do título, mas acabo ouvindo tanta bobagem por aí que dei uma escorregada. Conheci essa jovem manifestante de 8 de janeiro ainda em 31 de maio do ano passado, em meio às tarefas de elaboração de uma matéria muito específica sobre o uso de tornozeleira eletrônica. Não me refiro ao uso desse equipamento por criminosos, mas pelos mais de 1,3 mil brasileiros que saíram da Papuda e Colmeia, os nossos presos políticos. Como eles se sentem usando a tornozeleira eletrônica? Recebi a contribuição dessa patriota ainda naquela época, apenas ajustei um pouco para o momento presente, após uma nova conversa. Qualquer pessoa que tenha o mínimo de cognição sabe que as mais de 1,5 mil pessoas foram para o cárcere como presos políticos, por interesses outros que não a segurança do Brasil.
Nesse mês, a jovem Maria, de 23 anos, completa um ano de uso da tornozeleira eletrônica. Saiu do Presídio Colmeia no dia 28 de fevereiro do ano passado e, desde então, sua vida virou uma loucura. Ela está trabalhando num call center há cerca de cinco meses e ajuda em casa. O seu pai teve dois AVCs e a mãe vende perfumes. Maria também começou a vender trufas e a fazer maquiagens. Isso ajuda a família a completar a renda para viver. Tem ainda um irmão menor.
Em todas as segundas-feiras desde que saiu do Colmeia, Maria precisa ir até a Justiça Federal assinar. Diferente de outros locais do Brasil, na sua cidade ela pode sair de casa todos os dias, inclusive nos finais de semana, mas é obrigada a estar de volta até as 20 horas. Sendo assim, nos domingos ela pode cantar na Igreja Evangélica, como gosta. Seus pais são pastores.
Ela me conta que tenta olhar tudo pelo lado positivo, sentir orgulho de ser uma conservadora e ter lutado pelos princípios alinhados à sua fé. Como não ela não é uma “fortaleza”, volta e meia ela também “surta”.
Ocorre em momentos como na volta do trabalho, ao ver o tornozelo sangrando pelo uso do equipamento, por exemplo. Para não chamar a atenção, passa o tempo todo com calças longas, menos no domingo, quando vai à Igreja; para ir ao culto, usa saia. Quando precisa correr para pegar ônibus, a tornozeleira solta e começa a aparecer. Maria não quer confusão, então volta a esconder.
Uma amiga lhe perguntou o que era aquilo que usava na perna. Ela contou que foi presa em Brasília, mas a amiga não acreditou. Aliás, ela está sem acreditar até esse momento em que redijo essa matéria novamente.
Na semana passada, véspera do carnaval, a jovem Maria teve uma crise, começou a pensar no seu processo (Inquérito 4921) e lhe faltou o ar. Ficou literalmente desesperada, correu para casa e chorou escondida. A falta de previsão para toda essa tortura terminar a deixa assim.
A seguir, o relato do uso da tornozeleira feita em maio do ano passado, mas que é mais atual do que nunca.
“Eu tento olhar tudo sempre pelo lado bom e tirar a melhor parte de toda essa experiência. Mas a verdade é que, para quem não tem nenhum crime na bagagem, usar esse negócio no tornozelo é, no mínimo, constrangedor. Imagina uma típica garota que devolve R$ 0,10 de troco e, ao piscar dos olhos, acaba com isso na perna. É inacreditável!
No dia em que coloquei a tornozeleira, no Centro Integrado de Monitoração Eletrônica CIME, no Distrito Federal, foi tranquilo para mim. Estava voltando para casa, e lá no CIME do DF a maioria estava pelo mesmo motivo que eu. Eu ria sem acreditar no que eu estava vendo. Dias depois, quando troquei a tornozeleira por outra aqui no meu Estado, estive, sem dúvida, no pior ambiente que eu já frequentei. Ai a coisa foi diferente.
Isso vindo de quem passou 51 dias presa, dá para se ter uma noção do quanto ruim pode ser esse ambiente. As pessoas que frequentam aquele lugar só me faziam pensar: “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?”. Lembro que ao cortarem o sinal para a troca da tornozeleira, imediatamente a minha mãe recebeu uma ligação de Brasília perguntando por mim. Foi só nesse momento, quando ela me contou, que eu tive a certeza de que estava sendo monitorada.
Desde que comecei a usar a tornozeleira, eu uso apenas calça para sair e, por incrível que pareça, se a calça é de um tecido mais fino ou não tão cumprida, a tornozeleira tende a escorregar para aparecer (risos). Certa vez usei tão apertada, com a bandeira amarrada e tudo, quando tirei estava com furinhos marcados na pele. Coçou tanto que chegou a sangrar.
Eu vivo dizendo que não tenho vergonha de mostrar, ela é motivo de luta (na real, eu talvez tenha receio), mas como moro em cidade grande (capital), minha mãe se preocupa. Aqui ninguém sabe quem é quem. Mesmo que vejam a Bandeira do Brasil adesivada ou amarrada em volta, tem pessoas que vão criticar (fui criticada até por Bolsonarista, diga-se de passagem), apoiadores do atual governo (e é isso que me deixa horrorizada, em pleno 30 de maio de 2023, ter pessoas que o defenda).
Voltando…
O único momento em que a calça dá uma folga é no domingo, dia da semana em que consigo ir à igreja. Meus horários mudaram: a tornozeleira do Distrito Federal permitia que eu ficasse até as 22 horas fora de casa, mas com os finais de semana e feriados em casa durante as 24 horas. Já a tornozeleira do meu Estado, permite que eu fique fora de casa somente até as 20 horas, todos os dias. Assim, só consigo ir à igreja aos domingos, quando a celebração começa mais cedo. Num desses dias, eu vinha da igreja de saia e com a bandeira amarrada, desci numa lanchonete antes de ir para casa e uma cliente sentada à mesa quase me engoliu com os olhos. Eu não dei confiança e a minha mãe estava querendo me “guardar” no carro (risos de novo).
Sobre passeios, gosto muito de sair à noite, de uma praia, de um restaurante, mas já vimos que uma pessoa “perigosa” como eu não pode andar tarde na rua (a frase contém ironia), então tudo que faço é transferido para o horário do almoço, no máximo à tardezinha. Os passeios que gostamos de fazer são todos na região metropolitana, então não podemos ir até as lagoas, nem podemos mergulhar. Parte da família está a 82km de onde eu moro, então não nos vemos. E assim, a vida que segue.
Sobre carregar a tornozeleira, eu li a folha de instruções que recebi no dia cerca de umas 500x (risos). Tem que ser carregada por pelo menos três horas (acho que para não viciar a bateria). Só que parar três horas durante o dia não é algo tão simples e eu acabo carregando antes de dormir. Eu até colocava alarme para marcar as três horas de carregamento, mas de uns dias para cá tenho dormido “carregando” (que também não pode).
BÔNUS DESSA HISTÓRIA: Precisei mudar duas vezes de moradia depois que voltei de Brasília. E, nessas duas vezes, liguei para o 0800 e solicitei a mudança de endereço. Na primeira vez, passei dois dias ligando, a mudança foi decidida de última hora, então conseguimos duas noites na “casa velha”. Era feriado e, em final de semana, imaginei que eles estariam “de boa” (apesar de ser uma Central 24h). Na segunda-feira, fui levar o comprovante na Justiça Federal e o funcionário que me atendeu confirmou que eu poderia dormir no novo endereço, mas que ainda assim teria que ligar para central. Eles da central, como sempre, nada de atender. Consegui falar já quase 20h30, depois de uma crise de apitos e vibrações e de quase matar meus pais de preocupação. Na segunda vez, comecei ligar na sexta-feira (não liguei antes por acreditar que faria a alteração na hora, e a mudança só seria na dita sexta-feira), me atenderam quase meia noite (outro “tornozelado” lá da Casa de Ressocialização me deu a dica de ligar de madrugada) e disseram que primeiro tinha que entregar o comprovante. A tornozeleira foi de sexta-feira até segunda-feira apitando depois das 20h. Na segunda-feira levei, mas só consegui contato na terça-feira à noite. Deu tudo certo! Essa é a vida de uma das mais novas monitoradas desse Brasilzão lindo!