08/01: DE VÍTIMAS A BANDIDOS NUM PISCAR DE OLHOS

Ana Maria Cemin – Jornalista

15/10/2023 – (54) 99133 7567

No presídio Colmeia, onde fiquei mais de 7 meses, éramos três grupos diferentes de mulheres, porém todas misturadas nas alas Alfa, Bravo e Delta: as presas políticas do QG, que foram recolhidas pela Polícia Federal no dia 9 de janeiro e levadas ao Ginásio da PF e, dois dias depois, levadas ao presídio; o meu grupo de mulheres, que foi preso dentro do Palácio do Planalto; e, o último, o grupo das mulheres presas no Senado. A matéria a seguir é a sequência de outra, intitulada “Dos 7 meses presa, 77 dias ela ficou no isolamento sem sol”, que você também lê no blog www.bureaucom.com.br.

“Tudo que aconteceu dentro do Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro, com a Tropa de Choque nos tratando como criminosos, sendo que quem depredou já tinha ido embora, foi uma grande encenação com graves consequências. Fui levada do Palácio para a Delegacia da Polícia Civil e, de lá, para o Presídio Colmeia. Estava em choque e fiquei quieta a partir daí. Não queria falar com ninguém, porque eu não sabia quem eram as pessoas que foram presas comigo. Me taxaram de braba e disseram que eu não me importava com os outros. Não era isso e, depois, entenderam a minha situação. Eu estava em estado de defesa e queria entender o que tinha vivenciado, o que viria pela frente.

Ao chegarmos no presídio feminino, um policial do sexo masculino nos perguntou se éramos de direita ou de esquerda, creio que para nos direcionar a lugares diferentes. Ninguém lembra do rosto desse policial, porque não podíamos levantar a cabeça, nem mesmo olhar para os lados. Muito menos podíamos chorar. O medo era tanto que fazíamos tudo o que nos ordenavam. Até hoje não sabemos a razão pela qual essa pergunta foi feita e se alguém respondeu que era de esquerda. Porém, por ser uma pergunta um tanto estranha, direcionada para manifestantes patriotas, todas nós tentamos decifrar esse enigma dentro do cárcere. Para as patriotas presas no QG, a pergunta foi diferente: se elas tinham redes sociais. Deve ser porque nas redes é possível conferir o tipo de postagem feita e a sua opinião política.

Antes de entrar nos detalhes do que vivi na prisão, gostaria de contar um fato que mostra como funciona o governo brasileiro, o seu nível de organização. Uma colega de cela, que estava no Planalto, saiu ainda em fevereiro, porque perderam todo o processo dela. Tiraram tão rápido a minha amiga da cela que mal deu tempo para a gente se despedir. Choramos muito ao nos separar, porque ficamos muito ligadas uma à outra. Veja só, simplesmente perderam tudo, até a documentação da audiência de Custódia, e mesmo assim ela saiu do Presídio Colmeia com tornozeleira eletrônica. Até hoje ela não tem um processo, não tem denúncia, não tem audiência de Custódia, não tem nada, mas ela está com a tornozeleira. É como se o STF estivesse brincando de Uni Duni Tê. Nunca entendemos os critérios das saídas ou porque tudo isso aconteceu, nem a razão das leis não funcionarem para nós. Saí somente em agosto e a todo o momento diziam que quem tinha sido preso no Planalto e Senado só sairiam no final do processo.

Minha entrevistada fez parte de um movimento que durou mais de dois meses em frente aos quarteis de todo o Brasil e foi ingenuamente para a Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro. Levou tiro de bala de borracha no pé, se refugiu no Planalto, que estava com as portas abertas e virou ré num inquérito que está levando os manifestantes a prisão por 17 anos.

PRISÃO NO BLOCO 3 – ALA DELTA

Eu fiquei presa durante cinco meses no bloco 3 do Presídio Colmeia com um grupo grande de presas políticas, mas os meus últimos 77 dias foi em isolamento, junto com apenas outra patriota, sem direito a pátio e sol. Foi quando conhecemos uma ativista de direita presa pela Polícia Federal ainda em dezembro na Operação Nero. Ela foi recolhida ao presídio por participar de um ato de protesto contra a prisão do Cacique Sererê, ocorrida em 12 de janeiro. Quando essa patriota soube da prisão do índio, foi até o Palácio da Polícia Federal de Brasília. Naquela noite ocorreram depredações e queima de veículos no local, e ela foi presa perto do Natal. Quando chegamos, ela ainda estava em solitária.  

O isolamento foi um castigo por eu ter tentado separar duas presas políticas que estavam brigando. Acabei sendo levada junto com elas para a Delegacia de Polícia, onde foi registrado o Boletim de Ocorrência. A briga das duas foi consequência do cansaço da prisão. Todas nós estávamos completamente abaladas emocionalmente. O meu papel era ser testemunha, pois a briga aconteceu entre elas. Uma apanhou da outra e a que bateu voltou para cela normal e nós duas fomos para a ala de isolamento.

O correto do isolamento é ficar dez dias, como medida disciplinar, mas acabou se transformando em 77 dias por decisão da direção do presídio.

ISOLAMENTO SEM SOL

Nos levaram para o pior bloco, onde a cela era para uma só pessoa e ficamos em duas. A minha colega, que apanhou na briga, fez questão de dormir no chão, num colchonete fino e bem na direção do vento. O lugar era nojento, fedido e com as paredes rabiscadas. Além de uma única cama de concreto, tinha um vaso sanitário, chuveiro com água fria e pia. Uma policial fez a gente limpar paredes com as nossas próprias escovas de dentes, como se nós duas tivéssemos rabiscado. Depois de limpo ela nos disse: não sei se foram vocês que escreveram e não me interessa, pois eu queria a parede limpa. Esse tipo de humilhação nós sofríamos praticamente todos os dias.

Da minúscula cela podíamos ir para uma areazinha, sem sol também, então nós nos sentíamos como se estivéssemos dentro de uma gaiola em que você abre um pouquinho para o passarinho ter alguma sensação de liberdade. Era só um vão sem sol, sem nada.

A gente ficou cerca de três semanas sem acesso a livros para nos distrair e passar o tempo. Quando estávamos na Delta, pegávamos os livros quando íamos ao banho de sol. Nesse novo local não tinha isso. Começamos a reivindicar para as carcereiras e falávamos para os nossos advogados. Fizemos requerimentos, mandamos cartas, até que um dia uma policial resolveu arrumar livros.

Eu tentava malhar dentro da cela, porque tudo doía. Sem sair para o pátio, ficamos sem a oportunidade de fazer caminhadas.  Fiz os exercícios possíveis num lugar tão pequeno. Sem nada para fazer, conversávamos muito, inclusive com a patriota presa em dezembro, através das grades, com quem tive uma conexão muito boa. Quando ela saiu, ligou para a minha mãe para passar recado e falar como eu estava.

QUATRO CELAS DE ISOLAMENTO

Naquele local onde ficamos, tinha quatro celas de isolamento. Além da patriota presa em dezembro, tínhamos contato com uma presa do PCC que ficou indignada com a situação dessa patriota e pediu para a advogada entrar no processo dela. Essa presa comum falava que era um absurdo nós estarmos presas, que nós não tínhamos feito nada. Ela dizia que o caso dela era diferente, merecia estar ali por ter sido presa com granada, dinamite, outros armamentos e droga na sua casa. “Como é que vocês estão aqui?”, dizia ela. Creio que ela estava tentando ajudar a gente de alguma maneira. Lembro que ela disse para a patriota presa em dezembro: “Mulher, tu tens que falar com o advogado, não tem processo nenhum, não tem acusação nenhuma”.

As prioridades da patriota entrevistada são os seus dois filhos e o trabalho. Se voltar para o presídio, deixará uma criança de 2 anos e um adolescente 18 anos órfãos por 17 anos, que é a pena atribuída para a maioria dos julgados do Inquérito 4922.

DERRAMO LÁGRIMAS POR NÓS

Eu acredito que o ministro Alexandre de Moraes está fazendo isso conosco para atingir o Bolsonaro. Está nos usando e tudo que está acontecendo me machuca, em especial ver o meu filho de 18 anos desesperado, com medo de que eu pegue 17 anos de prisão. Isso é terrível. Eu não imagino a minha vida longe dele e do meu outro filho de dois anos.

A gente tem o costume de dizer que bandido ao ser preso vira crente. Eu já falei isso antes de ser presa. Agora eu sei o que isso significa: a gente se entrega a Deus. Eu creio que tudo tem um propósito e se Deus permitiu que pessoas simples, honestas e de fé fossem para os presídios de Brasília, deve ter um sentido.

Eu percebo que hoje tenho mais controle emocional, sou mais calma agora e estou forte espiritualmente. Mesmo assim, fiquei abalada com a pena que o ministro Moares definiu para a Edineia Paes da Silva Santos: 17 anos. Edineia é uma pessoa espetacular, simples, que trabalha com faxina. Ela se entregou ainda mais a Jesus lá no presídio, porque vem de uma família religiosa. Chorei muito por ela e comecei a derramar lágrimas para mim também. Pensar que uma mulher do bem ficará presa por 17 anos me abalou e eu fiquei com medo de ser presa injustamente de novo. Eu estou com medo de ficar longe dos meus filhos. Não fiz nada de errado e talvez se eu tivesse feito eu estaria livre, sem tornozeleira.

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