
Ana Maria Cemin – 23/06/2025
Entre perseguição política, selvas inóspitas, cartéis armados e sistemas de imigração indiferentes, esta é a história real de uma mulher brasileira em fuga. Um relato visceral, corajoso e absolutamente humano sobre tudo que se vive quando um país já não é abrigo e sobreviver passa a ser um ato de resistência.
Simone Tosato completou 50 anos em exílio — longe de casa, longe dos seus, longe da pátria que a condenou. Foi em setembro do ano passado, na Argentina, em meio a um pequeno encontro organizado por outros brasileiros também perseguidos políticos, tentando celebrar a vida onde só restava fuga e incerteza.
Condenada pelo Supremo Tribunal Federal a 13 anos e meio anos de prisão, Simone não esperou as algemas. Quando a Polícia Federal bateu à porta da sua casa em Cuiabá (MT), em 6 de junho de 2024, ela já havia desaparecido.
Era uma entre milhares que estiveram em Brasília, em 8 de janeiro de 2023 — sem conhecer ninguém, sem filiação partidária, sem fazer parte de um grupo articulado. Mesmo assim, foi presa. Passou sete meses no presídio feminino do Colmeia. Voltou para casa com tornozeleira eletrônica e uma certeza cruel: o retorno à cadeia era só questão de tempo.

Em maio, ao saber que seria encarcerada para cumprir pena junto a criminosas comuns, cruzou a fronteira. Na bagagem, poucos pertences e muito medo. Como publicitária, manteve-se ativa, criando à distância com a ajuda de um notebook e um celular. Parecia ter encontrado algum equilíbrio — até que a Advocacia-Geral da União do Brasil enviou ao governo de Javier Milei um pedido de extradição de dezenas de refugiados brasileiros. Simone estava na lista.
Ao fim de 2024, cinco brasileiros foram presos e seguem encarcerados na Argentina. Isso ativou o “modo sobrevivência” de Simone. E foi aí que sua travessia mais brutal começou: decidiu deixar a Argentina e buscar asilo político nos Estados Unidos. Sem passaporte, a única alternativa era cruzar a América por terra — país por país.
Ao todo, foram 11 fronteiras vencidas. Seu relato, mais do que comovente, é um grito de alerta: roubos, estupros, mortes. Situações extremas vividas principalmente na região da Floresta de Darién, território panamenho onde não há estrada, apenas mato, lama, rios e violência. É o único caminho possível para quem, como Simone, tem apenas os próprios pés como rota de escape.
Essa abertura não é ficção. É um convite. À medida que você avançar na leitura, se tiver empatia, vai sentir um pouco da travessia de Simone. E entender que, desde aquela armadilha na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro, ela nunca mais saiu de verdade.
Ela está se afogando. Sozinha. Esquecida. Quem, afinal, estenderá a mão para Simone? Convido a ler o relato em primeira voz:
“Desde que saí da Argentina, não tenho mais condições de exercer minha profissão como publicitária. Ainda consigo produzir pequenas peças usando o celular que resistiu à travessia da Floresta de Darién, já que meu iPhone foi roubado no caminho e o computador, por saber dos riscos de roubo e da impossibilidade de carregá-lo, deixei para trás.
Depois que fui presa, meus antigos empregadores ficaram com medo de manter qualquer vínculo comigo. Temiam ter as contas rastreadas e ver seus negócios comprometidos. Esse receio é comum — poucos empregam um preso político. A maioria evita se ‘complicar’, e isso nos deixa sem meios para garantir o mínimo para a sobrevivência.
Apesar de continuar criando, sem meu computador não consigo pegar trabalhos como freelancer — o que me frustra profundamente. Tento improvisar no celular antigo, que molhou durante a travessia, e ele está em péssimas condições. A bateria vive falhando, e ele frequentemente para de funcionar.
Jamais imaginei enfrentar tantos obstáculos para sobreviver. Faço faxinas quando sou indicada, além de lavar pratos. Mas até isso é penoso. Trabalhei em um lugar onde a jornada começava às 13h e terminava às 4h da madrugada. O pagamento era irrisório e, sem transporte público nesse horário, precisava gastar o que ganhava em corridas de Uber. No fim, o esforço extenuante não rendia quase nada.
Pensei em vender algo na rua, mas vivo ilegalmente aqui e seria um alvo fácil da polícia — por causa da minha aparência. Sou muito branca e chamo atenção num lugar onde cartéis e policiais agem em conluio. Para trabalhar como ambulante ou manter um negócio, é preciso pagar taxa aos cartéis.
Consigo arriscar um pouco de espanhol, mas meu sotaque entrega que sou brasileira. Isso me torna vulnerável a sequestros. Durante a travessia até o México — onde acreditávamos poder entrar legalmente nos EUA —, só por sermos brasileiros já cobravam o dobro nos resgates. No Peru, por exemplo, fomos presos pela polícia e só libertos após pagarmos U$100 por pessoa.
Diante de tudo que vi, tenho medo de sair na rua. Tenho medo de ser reconhecida como brasileira e deportada, ou pior, sequestrada. Não tenho dinheiro para pagar resgate, pois gastei tudo tentando chegar até aqui. Por isso, escolhi o isolamento como forma de proteção.

Minha vida agora se resume a esperar por um milagre. Que algo mude no Brasil, e eu possa voltar. Ou que surja uma chance de recomeçar num país seguro, onde o narcotráfico não controle a população. Tenho um filho e uma mãe — e, por mais dura que esteja minha situação, ainda consigo falar com eles por telefone. Isso é uma bênção. Só quem passou sete meses presa, incomunicável no Presídio Colmeia, entende o valor dessas ligações. Estou longe deles, contra a minha vontade, mas ainda os vejo pela tela do velho celular.
É pouco, mas é o que tenho. Enquanto espero, uso meu tempo em casa para estudar Inteligência Artificial e Tráfego Pago — áreas fundamentais para minha profissão e que quero dominar.
Saí da Argentina com U$ 2.000,00 e gastei tudo ao longo dos meses de jornada por 11 países. A cada trecho era necessário pagar para seguir adiante. Na Guatemala, fui sequestrada junto com o grupo de brasileiros com quem eu dividia o sonho americano. O sequestro aconteceu em 24 de dezembro de 2024, véspera de Natal.
Para sairmos do cativeiro, precisei emprestar dinheiro para os que estavam comigo. Cada um de nós teve que pagar U$ 100,00, e depois cobraram mais U$ 100,00 de cada um para atravessar em uma balsa. Não tive escolha. Emprestei o que pude, mas até hoje não me devolveram.
A casa onde estou abriga dez pessoas comigo, mas seria adequada para apenas duas. Foi o que consegui com o pouco que tenho — ou quase nada, fruto de uma faxina aqui, outra ali. Só consegui esse lugar porque fiz amizade com um rapaz que conheci na travessia da Floresta de Darién. Ele começou a trabalhar para o dono da casa, que aluga quartos para empregados. Todos os moradores são imigrantes: peruanos, venezuelanos, colombianos, equatorianos… e eu sou a única brasileira.



Dormimos todos no mesmo cômodo, em beliches. Há um casal, uma mãe com as filhas, e assim por diante. A privacidade se limita a lençóis pendurados. A ventilação é quase inexistente: há apenas uma pequena janela. Não é um lugar bom de morar, nem saudável, mas estou sem destino há meses, sem dinheiro. E acredite, passei por experiências piores, como um hotel na Nicarágua e numa casa próxima a um local onde pegamos carona em cima de um trem. Era um lixo só, o lençol sujo, muito bicho.
Esses dias, afastei a geladeira para limpar e fiquei apavorada com a quantidade de baratas que encontrei. Desisti de mover o fogão, com medo do que poderia ver. É uma situação séria, mas não tenho como sair daqui. Estou completamente sem recursos.
Quando estou deitada no quarto, com todo mundo dormindo, consigo ouvir as baratas circulando pelos canos das camas.
SAÍDA DA ARGENTINA POR MEDO
Com a prisão de Wellington Luiz Firmino na fronteira entre Argentina e Chile, em 19 de novembro de 2024, tivemos que refazer nossos planos de ir para os Estados Unidos. A nova rota incluiu uma travessia de barco por um rio até a Bolívia. O Chile se tornou perigoso para brasileiros exilados — tanto que Firmino segue preso em Ezeiza, Buenos Aires. No Brasil, ele foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal a 17 anos de prisão, pelo mesmo motivo que eu: ser uma manifestante do dia 8 de janeiro.
Chegamos a La Paz ainda naquela noite em que deixamos a Argentina, e no dia seguinte pegamos um barco rumo ao Peru. Lá, vivemos uma experiência de suborno com a polícia — tivemos que pagar U$ 100,00 para não sermos levados para a delegacia. Depois do pagamento, os policiais nos indicaram o caminho a seguir: passamos por Arequipa, Cusco e depois Lima.

Na fronteira, pagamos uma taxa e seguimos para o Equador. Esse pagamento nos permitia passar sem registro, já que estávamos receosos de sermos identificados como brasileiros em fuga. O grupo que havia saído antes de nós, também rumo aos EUA, já tinha virado notícia — inclusive com paradeiros divulgados na imprensa. Para nos manter despercebidos, não passamos por imigrações. Seguimos nessa jornada do sonho americano. Só utilizamos as estruturas da ONU para imigrantes — acampamentos organizados — depois da travessia da Floresta de Darién, já na América Central. Até ali, seguimos por rotas alternativas para evitar exposição.

Entramos na Colômbia por Ipialis, seguimos para Medellín e depois para Necoclí, onde pegamos uma lancha até um acampamento secreto — ponto de partida para a travessia da Floresta de Darién. Essa floresta, na verdade, é composta por duas partes. A primeira, ainda em território colombiano, não representa tanto perigo. Não há indígenas hostis, e é possível pagar U$ 50,00 para alguém carregar sua bagagem — são pessoas amigáveis.
Mas ao chegar à parte da floresta que fica no território do Panamá, a situação muda drasticamente. Os colombianos que nos acompanhavam não podiam seguir, e a trilha deixava de ter guias. A única forma de orientação era seguir sacolas plásticas azuis amarradas nas árvores — uma espécie de trilha improvisada, sem qualquer ajuda externa.
Foi ali que me perdi do grupo de brasileiros. Eu havia feito amizade com uma família venezuelana que morou no Brasil, e tentei organizar a travessia com um grupo maior para mais segurança. A família tinha pai, mãe e filhos de 10, 14 e 15 anos. Juntos, saímos do acampamento e embarcamos na lancha rumo à floresta.

No dia da travessia, chovia muito, mas não podíamos esperar. Cada item — comida, água, recarga de celular — era cobrado em dólares. Estávamos gastando demais: um pratinho de comida custava U$ 10,00, uma garrafa de água U$ 5,00, recarregar o celular custava U$ 10,00, e até colocar crédito custava o dobro do valor comum. Para sacar dinheiro, cobravam 25% de comissão.
Sabemos que toda aquela região é dominada por cartéis, e é impossível saber quem é quem. O fato é que, ao chegarmos ao acampamento secreto, fomos revistados. Tiveram acesso às nossas mochilas, revistaram nossos corpos e nos obrigaram a tirar os tênis. Inclusive, confiscaram nossos canivetes — mesmo sendo ferramentas importantes para segurança numa travessia tão arriscada.

Na minha mochila, coloquei comida para mim e para outro brasileiro, com quem comecei a caminhada pela Floresta de Darién. Como a mochila estava muito pesada, ele ficou responsável por carregá-la — assim como a nossa barraca. O combinado era caminharmos todos juntos, mas havia muita gente. Quando me dei conta, não havia mais ninguém conhecido por perto. A sensação foi horrível. Fiquei cerca de 40 minutos com o coração apertado, sentindo que estava completamente sozinha: sem comida, sem barraca… Enrascada numa travessia de dias por um ambiente extremamente perigoso. Aquela ideia de entrar em grupo e permanecer todos unidos se mostrou uma ilusão — e todos os meus medos vieram à tona.
Depois desse tempo que pareceu eterno, encontrei a família de venezuelanos e segui com eles. Ajudava quem eu podia a subir várias ribanceiras. Mas eu estava fraca — a fome me castigava. Em três dias, só consegui me alimentar com a sobra de uma papinha de bebê, que uma mãe me ofereceu no caminho.
Sem comida e sem barraca, eu estava exausta. Uma outra mãe venezuelana, sensibilizada com a minha situação, me convidou para dividir a barraca com ela e sua filha adolescente. Mas ali dentro havia apenas um tapetinho de EVA onde as três dormiam. O único espaço restante para mim era diretamente sobre a lama, porque a chuva era intensa durante toda a noite. Dormi assim mesmo, e no dia seguinte mal conseguia mover as pernas, de tanta dor.

Passei três dias com a mesma roupa molhada, porque não era possível trocá-la nem tomar banho — apesar de atravessarmos rios inúmeras vezes. Talvez seja exagero dizer que cruzamos cem vezes por dentro da água, mas a maior parte da caminhada era feita por dentro do rio, com pequenos trechos em terra enlameada, cheia de pedras e raízes.
Alguns pontos do percurso eram tão perigosos que eu só conseguia pensar nas pessoas que talvez tivessem caído ribanceira abaixo — e ali permanecessem, sem socorro, até morrer. Não presenciei acidentes assim, mas falavam de corpos encontrados dentro de barracas. Não fui ver — minha condição física e emocional era tão frágil que mal conseguia me manter de pé, de tanta fome e cansaço.
No segundo dia da travessia, já na parte da floresta que pertence ao Panamá, chegaram até onde estávamos dois colombianos esfaqueados. Contaram que haviam sido atacados num grupo pequeno e que os indígenas haviam estuprado cinco mulheres e uma menina de apenas nove anos. Mais tarde, já no acampamento da ONU, confirmamos que essa menina faleceu em consequência das agressões sofridas.


Ao saber da morte da menina de nove anos, fiquei profundamente revoltada. O grupo dela estava um pouco à frente do nosso — e era pequeno. A orientação é sempre caminhar em grupos grandes, porque os ataques acontecem com mais frequência quando há poucas pessoas. Além disso, os primeiros da fila correm maior risco de violência sexual, enquanto o pessoal da retaguarda, em geral, sofre com saques. Na floresta, fiz amizade com algumas adolescentes e, infelizmente, uma delas também foi violentada mais a frente.
Naquele dia em que socorremos os colombianos feridos, esperamos cerca de duas a três horas antes de seguir viagem, na esperança de evitar um ataque. Mas a situação de fome era tão crítica que ninguém conseguia esperar por muito tempo. A necessidade de continuar era maior, mesmo diante da possibilidade de enfrentar um inimigo cruel dentro da mata.
Na floresta do Panamá, nos deparamos com grupos armados usando balaclavas e fuzis. A ordem deles era clara: entregar tudo de valor, especialmente iPhones e dinheiro.
Eu havia enrolado meu iPhone em uma capa de chuva e, mesmo sob ameaça de morte para quem escondesse objetos, decidi entregar apenas o dinheiro que tinha. Fui assaltada duas vezes em Darién, mas nessa vez levaram somente dinheiro, porque quando estavam prestes a revistar minha bolsa, um menino venezuelano passou mal e eles se distraíram. Ele teve uma crise de ansiedade forte. Tentei acalmá-lo, dizendo que estava acabando, que já estávamos perto do fim, enquanto atravessávamos o rio.
Nesse processo, acabei me distanciando das pessoas com quem caminhava. Me perdi da família do neném e da adolescente. Eu me sentia na obrigação de ajudar, e isso me atrasava — acabei me separando de conhecidos, como os brasileiros que haviam entrado comigo na floresta.
Enquanto tentava acalmar o filho da família venezuelana, ouvimos tiros. Fomos abordados por homens armados, que gritavam para que subíssemos um barranco. Logo depois, escutei gritos de duas mulheres não muito longe. Era impossível entender o que estava acontecendo — tudo acontecia rápido demais. Eu me sentia anestesiada diante daquele terror. Mais tarde, descobri que outra amiga, uma jovem venezuelana, havia sido estuprada.
Ela tinha apenas 19 anos. Isso me abalou profundamente. A partir daquele momento, segui ao lado dela, chorando. Tentei segurar, disfarçar, mas foi impossível. Os gritos vindos da mata ecoavam na minha cabeça.
Durante o assalto, revistaram todas as mochilas e, por pura maldade, rasgaram tudo o que encontravam — inclusive a capa de chuva onde eu havia escondido meu iPhone. Como se não bastasse, fui revistada por completo. Arrancaram meu sutiã para verificar se havia dinheiro escondido nas costuras, e chegaram a apalpar meu corpo, inclusive minhas partes íntimas, procurando por dinheiro. Graças a Deus, não chegaram a me violentar — mas eu sabia que isso acontecia com outras mulheres.
Foi ao descer do barranco, após a abordagem dos bandidos, que encontrei a jovem venezuelana chorando. Quando ela me contou sobre a agressão sexual que havia sofrido, senti como se fosse minha própria filha. Já estávamos há dois dias enfrentando tudo juntas, e o que eu podia fazer naquele momento era abraçá-la e compartilhar sua dor.

A cada etapa daquela travessia, a revolta crescia dentro de mim. E quando finalmente chegamos ao acampamento da ONU, fui abordada por funcionários que queriam aplicar uma pesquisa conosco. Fiquei furiosa. Sabem exatamente o que acontece na selva — e mesmo assim fingem surpresa, vêm apenas levantar números, dar aparência de assistência e usar nossas tragédias para captar recursos. Me pareceu tudo muito hipócrita.
O verdadeiro problema humanitário do Darién — território panamenho — não está apenas nas estatísticas. São os corpos, as violações, os assaltos. Quando soube da morte da menina de 9 anos e do que aconteceu com a minha amiga jovem, ambas violentadas durante a travessia, passei três noites em claro. Chorando. Me sentindo anestesiada dentro de um pesadelo real. Eu só pensava em justiça. Em vingança. Meu instinto era voltar e punir quem fez aquilo.
Mas nós, migrantes atravessando aquela floresta, não temos armas. Não temos proteção. Só seguimos com esperança e desespero. Lembrei de tantas famílias venezuelanas fugindo de um regime tirano, buscando um lugar para recomeçar, e sendo atacadas no caminho — como se sobreviver à opressão em casa não bastasse.

Durante muitos dias, chorei tudo o que havia dentro de mim. Essa dor aos poucos foi se assentando, mas até hoje, quando lembro, o estômago embrulha. A jovem voltou para a Venezuela, porque já no México teve o sonho frustrado pela mudança na política imigratória dos EUA, como todos nós. A família venezuelana conseguiu ajuda para recomeçar no Brasil, mas perdeu tudo durante a travessia — os bandidos roubaram até o dinheiro guardado na conta bancária. Por isso, deixei meu iPhone descarregar, com medo de que me forçassem a colocar a senha.
Uma das experiências mais dramáticas que vivi — se é que pode haver algo mais terrível do que ser assaltada, ver gente esfaqueada e estuprada — aconteceu no terceiro dia de travessia.
Na segunda noite na Floresta de Darién, não chovia, mas eu não conseguia dormir. A fome era insuportável, a sensação era horrível. Pedi se alguém tinha algo para comer, porque minha última reserva — uma lata de atum — havia sido roubada por um dos índios. Aliás, todos estavam sem comida. A mãe da bebê me ofereceu o restante de uma papinha: duas colheradas.
A lembrança da fome ainda me revolta, especialmente ao lembrar da lata sendo levada. Mas prefiro focar no gesto de generosidade daquela mãe, que dividiu comigo o restinho de farinha láctea com leite e também sua barraca. Foi o que me sustentou por três dias na mata. No terceiro dia, minhas forças se esgotaram.

Lembro que, já muito fraca, caminhava com o grupo, mas fiquei para trás com o garoto venezuelano. Nos perdemos da família dele. Próximo de nós estava uma jovem grávida, e quando ela começou a tropeçar ao atravessar novamente o rio, pedi a ele que a acompanhasse. Tive medo que ela caísse nas pedras e se machucasse.
Foi assim que fiquei sozinha na travessia do rio, que naquele momento estava com a correnteza muito forte. Eu usava botas boas para andar na lama, mas péssimas para caminhar sobre pedras — escorregava muito, especialmente com a fraqueza causada pela fome.
No meio da travessia, comecei a sentir uma sonolência extrema, talvez pela pressão baixa. A visão foi escurecendo. Quando olhei para a outra margem, todos já haviam atravessado. Ninguém à vista. Naquele torpor, só pensava que precisava manter a calma e resistir ao sono e à apatia. Meu corpo respondia devagar, e eu seguia lentamente, lutando para não apagar.
Sou uma mulher que gosta de aventuras — atravessar a floresta não me assustava. Mas naquele momento, eu estava à beira da inconsciência. Escorreguei numa pedra, me desequilibrei e rolei com a mochila até desmaiar. Pelo menos, creio que desmaiei, vencida pelo sono. Quando recobrei a consciência, estava perto de uma ribanceira. Saí engatinhando até uma pedra e descansei ali.
Pedia a Deus que me ajudasse. Não queria ficar para trás e ter que enfrentar o resto da jornada sozinha. Voltei ao ponto da travessia com um único objetivo: encontrar a trilha sinalizada com sacolas plásticas azuis — o caminho dos imigrantes.
Consegui reencontrar a trilha. Não sei de onde tirei forças, mas comecei a correr. Subi ribanceiras onde só cabia um pé por vez — se errasse, cairia no penhasco. Caminhei por cerca de 40 minutos em ritmo intenso até reencontrar o grupo. Até hoje não sei como consegui. Eu não tinha energia, só vontade de chorar. Mas não chorei. Tinha medo de desidratar e criar mais um problema. Para manter minha mente firme e me conectar com Deus, comecei a cantar uma música sagrada — isso me dava forças.
Sei que foi Deus quem me tirou daquele rio. Não encontro outra explicação. Eu estava sozinha, à deriva, e senti como se uma onda me tivesse empurrado até a pedra onde me recuperei. Mas ali não há ondas. Quando retomei a caminhada, batia nas pernas e no rosto para permanecer acordada. Só queria fechar os olhos, mas lutava contra o sono provocado pela pressão baixa. Quando tudo escurecia, eu me beliscava e bebia a água do rio. Diziam que não era seguro, mas foi o que me manteve viva. Eu bebi o tempo todo.
Encontrei novamente o pessoal, porque dois deles pediram para o grupo diminuir o ritmo, para que eu pudesse alcançar todos — caso contrário, disseram que teriam voltado para me buscar.
Seguimos pela mata até chegarmos às embarcações conhecidas como “las piraguas”, pequenos barcos tradicionais usados por comunidades indígenas há séculos. Os índios cobravam U$ 25,00 por passageiro para nos levar até o posto da ONU — e eu não tinha nada. Chorei de desespero. Foi quando uma garota se compadeceu e me emprestou o valor. Caso contrário, eu teria que caminhar mais cinco horas até o acampamento — e eu já não tinha forças e tinha certeza de que iria morrer se caminhasse mais 5 horas.

Sair da floresta naquela condição, completamente fragilizada e sem dinheiro, foi sentir-se miserável, vulnerável em todos os sentidos. Lembro que supliquei: “Moço, pelo amor de Deus, levaram tudo. Eu não tenho como pagar agora, mas o senhor me leva até Bajo Chiquito? Lá tem Western Union e eu posso sacar para te pagar.” Mas não houve qualquer consideração. Nenhuma. O sistema ali é implacável — eu até conseguiria sacar, pagando uma comissão de 25%, como sempre, mas foi só a compaixão daquela moça que me salvou.
Ao chegar em Bajo Chiquito, saquei o valor, paguei a moça e encontrei um lugar onde pude passar a noite. Depois soubemos de um caso terrível: um grupo que também não tinha o valor da travessia foi violentado pelos índios — homens, mulheres, até senhores de idade.
Em Bajo Chiquito reencontrei parte da família venezuelana e alguns dos brasileiros que saíram comigo da Argentina — os demais já haviam seguido rumo aos Estados Unidos. No amanhecer, seguimos de barco até o posto da ONU. Eu ainda tinha as cenas da floresta frescas na memória — como o espancamento de um homem por não ter dinheiro ou um iPhone. Ele foi jogado de uma ribanceira com altura equivalente a dois andares. Por sorte, sobreviveu, mesmo muito machucado. Quem não tinha dinheiro era espancado ou estuprado. A crueldade não tinha limites.
Para esconder o pouco dinheiro que tinham, as pessoas usavam estratégias engenhosas: colocavam em celulares velhos, dentro da lingueta dos tênis, ou — no caso das mulheres — enrolavam em camisinhas e escondiam no corpo. Eu mesma tentei esconder tudo o que pude, mas os índios vasculhavam tudo: costuras da mochila, sutiã, calcinha. Eram mais minuciosos que a polícia.
No posto da ONU, fiquei numa casinha com a família dos venezuelanos. De lá, partimos de ônibus para a Costa Rica, pagando U$ 60,00 por pessoa. Em cada país que passamos havia uma estrutura montada para explorar os imigrantes — um comércio que lucrava com o sofrimento de quem alimentava o sonho de chegar aos Estados Unidos. Depois de tudo, ainda vimos crianças indígenas jogando com iPhones — os mesmos aparelhos que haviam sido saqueados de nós. Eles eram vendidos em Bajo Chiquito, uma vila transformada em polo de consumo emergencial, com hotéis, lojas e agentes de Western Union. Chegamos ali com nada: roupas molhadas, corpos sujos, exaustos.

Quando o ônibus chegou na Costa Rica, já havia gente na rodoviária oferecendo pacotes para atravessar até a Nicarágua. Foi nessa hora que me perdi da família venezuelana, pois saiu antes.
Fechamos negócio rapidamente com uma mulher que nos levou até uma casa simples, onde dormimos em colchões espalhados no chão. Eu estava de volta com os meus compatriotas e conheci a Joana — uma peruana incrível que voltou para o seu país e depois foi para Londres, com quem converso até hoje.
A saída da Costa Rica foi mais uma aventura surreal. A mulher costarriquenha que nos vendeu o pacote teve um surto e acusou alguém do nosso grupo de ter perdido o celular dela. Suspeito que tudo aquilo foi armação daquela mulher — ela havia oferecido o celular a um brasileiro para sacar dinheiro via Western Union, e depois armou aquela confusão.
Estávamos novamente refém dela, numa casa sob a chantagem dela: ou pagávamos um novo celular, ou não seguiríamos em frente. Como eu ainda tinha uma pequena reserva, passei o cartão de crédito para resolver a situação.

A ideia era ir de carro até certo ponto, depois seguiríamos de moto, em seguida barco, e finalmente de ônibus — esse era o roteiro prometido no pacote de ‘imigrantes’.
Mas nada saiu como o prometido. Pegamos, sim, as motos — mas numa estrada de lama, em plena chuva. Gente caiu feio no caminho e se machucou. Era o único jeito de atravessar um extenso laranjal. Depois, seguimos a pé pela mata até a beira do rio. Já entardecia. A distância era grande, o cansaço enorme.
Estava previsto que sairíamos da Costa Rica pela manhã, mas por causa da confusão com o celular e da chuva muito forte, acabamos partindo só à tarde. A estrada estava coberta de lama — os pés afundavam, e bastava um descuido para escorregar e cair. Ajudei a mãe com o bebezinho, pois o trajeto estava muito difícil.


Na beira do rio, embarcamos mesmo sob chuva e fizemos a travessia até a Nicarágua. Nos levaram para um hotel com um banheiro imundo e um quarto ainda mais sujo — e a gente chegou daquele jeito: cobertos de lama, exaustos. Só queríamos um banho e dormir. No dia seguinte, pegaríamos um ônibus para Honduras.
A travessia envolveu quatro ônibus diferentes. A cada baldeação, gritavam conosco para descer correndo. Um verdadeiro caos. Era só subir e descer, em sequência — momentos cômicos e trágicos (risos). Nunca entendi o porquê de tantas trocas de ônibus; talvez fosse para despistar a polícia, já que éramos imigrantes ilegais. A superlotação era outra constante: onde cabia uma pessoa, colocavam duas; onde cabiam duas, enfiavam três. Lembro de ter viajado com metade da bunda fora do assento.
O cheiro de fedor humano dentro do ônibus era inacreditável. O motorista corria demais, a música estava absurdamente alta e luzes coloridas piscavam o tempo todo. Parecia uma mistura de rave com pesadelo. Imagino que, entre os imigrantes, havia gente que nunca ouvira falar em desodorante. Usei o restinho de perfume que os índios não haviam levado — só para tentar mudar a sensação olfativa.


Em Honduras, paramos numa pequena base da ONU e fechamos um pacote para seguir até a Guatemala e o México. Cobraram U$ 380,00 por pessoa.
Combinamos de subir a pé uma montanha e, depois, pegamos um carro que atravessava uma fazenda — tudo para fugir da imigração hondurenha. Assim que cruzamos a fronteira e entramos na Guatemala, outro grupo nos abordou e, na prática, nos sequestrou: cobraram mais U$ 200,00 por pessoa para permitir que seguíssemos até uma balsa. O problema é que muitos do grupo não tinham mais dinheiro. Eu havia conseguido sacar algo em Honduras, então concordei em emprestar o valor.
Contando assim pode até parecer simples, mas o que vivemos foi de uma brutalidade absurda. Esse sequestro ocorreu na manhã do dia 23 de dezembro de 2024. Dormimos duas noites num barraco improvisado, sem comida, sem estrutura, só com um pouco de água. A fome apertou, e o “dono do negócio” — um sujeito com correntes e anéis de ouro, típico figurino de cartel — apareceu escoltado por homens armados. Entrou com arrogância e disse:
“Vocês tão reclamando do quê? Quem vai reclamar aqui? Vocês estão aqui porque é Natal e não tem táxi pra levar vocês até Tapachula. Não quero ouvir ninguém reclamar.”
Dissemos que estávamos com fome. Ele mandou servir uma comida medonha: “um trem mole” enrolado numa folha de banana. Parecia fígado de galinha malcozido, ou algo próximo disso — mas a fome era tão grande que comemos sem deixar nada.
Naquela noite, de dentro do barraco, escutávamos uma enxurrada de fogos de artifício — como os que usamos no réveillon, só que em escala tão absurda que parecia que o teto ia desabar.
A saída para o México aconteceu às 18h do dia de Natal. Arrumamos nossas coisas com aquela expectativa de estar na reta final, enquanto eles nos apressavam a correr. Caminhamos bastante até chegar à balsa — que, na verdade, era apenas uma prancha de madeira apoiada sobre câmaras de pneus, para atravessar um pequeno trecho de rio. Pagamos U$ 100,00 cada um por essa travessia, sentando intercalados, bem-organizados, para equilibrar o peso da tábua sobre as águas.
Do outro lado, nos colocaram num 4×4 minúsculo — éramos 12 pessoas, umas sentadas no colo das outras. Mais adiante, trocamos para outro carro igualmente apertado, até que chegamos a um galpão por volta da meia-noite. O local era sujo, com um único banheiro imundo. Foi ali, no chão, que passamos a noite.
Às 3 da manhã nos colocaram em veículos tipo “pau de arara”, usados normalmente para transportar trabalhadores rurais, com as pessoas em pé na carroceria. Seguimos por estradas de terra, matagal fechado, com mais três trocas de veículo até, finalmente, chegarmos ao México.

Nos deixaram na praça central de Tapachula, de onde começamos a procurar onde nos hospedar. Joana tinha chegado ao México com outro grupo e me chamou para devolver os U$ 40,00 que eu havia emprestado. Acabei indo com ela para a casa onde estava hospedada, dividimos o aluguel e passamos o Ano-Novo por lá.
Iria seguir viagem com Joana rumo à Cidade do México. Pagamos uma parte do valor do pacote que sairia U$ 1.200,00 cada uma, e deixaríamos o restante para quando chegássemos. Mas ao enviar meu documento de brasileira, o preço dobrou por eu ser do Brasil. Nada era normal nessa viagem. O procedimento era que, ao fechar o pacote, nos levavam a um hotel para esperar a saída. Diante desse aumento absurdo, desisti e perdi o adiantamento.


Antes de seguirmos destinos diferentes, Joana e eu fomos à fila da imigração. Esperei por muito tempo, mas ao chegar minha vez, disseram que naquele dia não estavam atendendo brasileiros. Ficamos na rua, sem lugar para dormir. Joana acabou encontrando amigos do Afeganistão — que conheceu durante a travessia da floresta — e eles nos acolheram por duas noites. Pudemos conhecer um pouco da cultura deles. Nos contaram que no país deles as mulheres não podem sentar para comer com os homens e observamos que eles comem no chão e com a mão. Os afegãos nos acolheram com respeito, foram amáveis e não permitiram que a gente comprasse nada. Foram verdadeiros cavalheiros.
Era o momento de subir para a última etapa, antes da entrada nos EUA. Um grupo de quatro brasileiras que estavam à frente me ligou, me chamando para estar com elas. São exatamente as quatro que foram presas em janeiro deste ano nos Estados Unidos. Eu tentava fechar um pacote para alcançá-las antes da fronteira, mas não consegui — novamente por causa dessa cobrança absurda por ser brasileira. E foi justamente esse detalhe comercial que fez com que eu não fosse presa junto com elas.

Tentei quatro vezes me entregar às autoridades mexicanas para obter o “papel de permesso”, uma permissão temporária para estrangeiros. Na minha cabeça, bastava dizer: “Quero me entregar para conseguir o documento”, mas não era tão simples. Estava sozinha, sem ninguém para seguir comigo. A permissão dura 15 dias e eu nem isso tinha, mas tudo tem uma razão de ser. O meu atraso em Tapachula foi o que me impediu de ser presa nos EUA.
Depois de duas semanas, consegui ir até a Cidade do México. Mas o sonho de entrar nos Estados Unidos com pedido de asilo desmoronou com a prisão das quatro brasileiras. Saí do México, que, como tantos países da América Central, está dominado por cartéis e regimes autoritários. E sigo sem destino. Não posso voltar ao Brasil. Não estou mais com os brasileiros que viajaram comigo.





Hoje, o sentimento que me resta é de revolta pelo que está acontecendo com aquelas quatro mulheres guerreiras, que passaram por tudo o que eu passei — atravessaram a floresta de Darién, se entregaram voluntariamente na imigração e agora estão sendo tratadas como invasoras. Vivemos exatamente o momento mais extremo da política imigratória dos EUA: com Biden abrindo brechas que poderiam nos favorecer, e Trump impedindo qualquer possibilidade — mesmo para quem solicita asilo por perseguição política em um regime de esquerda no próprio país.
Me sinto sozinha. Escrevi muitas cartas para parlamentares, várias delas endereçadas ao deputado Eduardo Bolsonaro, e nunca recebi uma única resposta dos nossos representantes da direita. Perdi completamente a esperança em políticos, no ser humano e no Brasil. Só acredito em Deus.”
1 comentário