Artigo de Pérola Tuon*
Desde que o Senado aprovou o projeto que ficou conhecido como PL da redução de penas, espalhou-se a ideia de que os presos do 8 de janeiro não poderão ser libertados antes do Natal, porque a nova lei ainda não foi promulgada ou porque seria necessário aguardar recálculos formais das penas.
Essa leitura, no entanto, não corresponde ao que já aconteceu na prática dentro do Supremo Tribunal Federal.
Soltar não depende de nova lei
A expedição de um alvará de soltura não depende da promulgação de nova lei, de prazos de sanção ou veto, nem de qualquer “revisão criminal”. Não há revisão porque não há erro a corrigir: o que existe é a aplicação de uma lei penal mais benéfica, com nova dosimetria e simples ajuste do cálculo. Isso é execução penal — não um rito extraordinário inventado para justificar inércia.
Nos processos relacionados ao 8 de janeiro, o STF concentra as funções de investigação, julgamento e execução. Nesse contexto, o ministro relator atua como juiz da execução penal, com autonomia para decidir se o réu permanece preso ou se passa a cumprir a custódia em regime domiciliar, mediante restrições.
Esse poder não é apenas teórico. Ele já foi exercido reiteradamente.
Solturas em série: não foi um caso isolado
Entre os casos ocorridos neste ano, destaca-se o de Fabrízio Cisneros Colombo, réu na Ação Penal 2.637, por se tratar de um episódio amplamente documentado. Após mais de um ano em prisão preventiva, ele teve a custódia substituída por prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica e imposição de medidas cautelares, por decisão direta do ministro Alexandre de Moraes.
O caso de Fabrízio, contudo, não foi isolado.
Naquele mesmo período — em alguns casos, no mesmo dia — outros réus do 8 de janeiro também foram beneficiados com prisão domiciliar de natureza humanitária, com fundamento no Código de Processo Penal. Entre eles estão Adalgiza, Aildo, Claudio Mendes, Eliene, Gilberto, Hamilton, João Claudio, José Carlos, Marco Alexandre, Marlucia Ramiro, Nelson, Ramiro Caminhoneiro, Robergson, Rubem e Yette, totalizando 15 alvarás de soltura.
No mesmo mês, houve ainda a concessão de prisão domiciliar com base na Lei de Execução Penal, alcançando apenados que já cumpriam pena em regime fechado, como Jaime, João Batista de Castro, Jorge, Jorginho, Miguel e Sergio — algo que, à época, também era tratado como impossível.
Os casos não eram homogéneos. Alguns beneficiados preenchiam plenamente os requisitos legais; outros, não. Em parte deles houve pedido expresso da defesa; em outros, a substituição da prisão ocorreu sem petição específica.
O elemento comum foi a avaliação do juízo de que, naquele momento, a manutenção da prisão não se mostrava necessária, sendo possível substituí-la por custódia domiciliar, acompanhada de restrições.
O papel do advogado: pedir é legítimo
Diante desse histórico amplamente documentado e comprovado, surge uma questão objetiva: se a defesa entende que a prisão não é mais necessária, por que não pedir?
Do ponto de vista jurídico, não existe nenhum impedimento para que o advogado requeira, hoje, a substituição da prisão por prisão domiciliar de natureza humanitária.
A defesa não precisa aguardar a promulgação de nova lei, um recálculo formal de pena, manifestação do Executivo ou qualquer outro fator externo frequentemente invocado no debate público. Esses condicionantes não são exigência jurídica para a formulação do pedido.
Grande parte das análises que negam essa possibilidade parte de comentários genéricos, muitas vezes dissociados da prática concreta dos processos do 8 de janeiro. Há interpretações que simplesmente ignoram as solturas em bloco ocorridas em 2023 e 2025, já registradas nos autos, e acabam por reproduzir premissas equivocadas sobre progressão de regime e requisitos legais.
A prisão não é automática nem permanente. Ela subsiste apenas enquanto o juiz entende que é necessária, proporcional e adequada. Quando esses requisitos deixam de existir — ou podem ser atendidos por medidas menos gravosas — o pedido defensivo é legítimo e plenamente cabível, independentemente de alterações legislativas supervenientes.
Um motivo a mais
Hoje mesmo fiz os cálculos do caso do Sr. Marcos Afonso, 63 anos, de Divinópolis (MG). Pela nova lei aprovada no Senado, ele teria atingido o requisito temporal para a liberdade condicional já na última terça-feira, 16 de dezembro de 2025.
Esse dado me leva a uma pergunta direta: se o apenado, em tese, já estaria apto à liberdade condicional, qual seria o fundamento para negar, ao menos provisoriamente, a concessão de prisão domiciliar de natureza humanitária até que a nova dosimetria seja formalmente aplicada?
Não se trata de antecipar o mérito nem de substituir o recálculo definitivo da pena. Trata-se de uma medida transitória e cautelar, que evita a manutenção de uma prisão que, à luz da nova legislação, tende a se tornar desproporcional.
O caso do Sr. Marcos Afonso não é isolado. Hoje a minha base de dados registra exatamente 95 apenados do 8 de janeiro que já cumpriram pelo menos dois anos de cárcere, sendo que 18 deles estão, na prática, completando três anos de prisão.
Diante desse cenário, pedir que essas pessoas saiam antes do Natal, ainda que sob prisão domiciliar com restrições e monitoramento, não representa qualquer ruptura jurídica. Ao contrário: é uma medida coerente com a lógica da execução penal, com a retroatividade da lei penal mais benéfica e com precedentes já firmados pelo próprio STF.
A pergunta que permanece é simples: qual é o interesse jurídico ou humanitário em manter essas pessoas presas por mais alguns meses, quando o próprio ordenamento aponta para a sua iminente colocação em liberdade?
Natal em casa não é delírio
A ideia de que presos do 8 de janeiro possam passar o Natal em casa não é ilusão nem desinformação. É algo que já ocorreu antes, por decisão direta do STF, em diferentes situações e com fundamentos variados.
Se o relator decidir novamente nesse sentido, pode expedir alvarás de soltura a qualquer momento, permitindo que essas pessoas cumpram prisão domiciliar enquanto a nova lei é formalizada e os cálculos são ajustados.
Em termos práticos, a conclusão é simples: quando o juiz entende que a prisão não é mais necessária, ele solta.
A partir do acompanhamento sistemático dos processos do 8 de janeiro, dos cálculos individualizados e dos precedentes já documentados, não se trata apenas de uma possibilidade jurídica, mas de um cenário provável.

*Pérola Tuon – Analista de inteligência de dados, tradutora juramentada e voluntária na causa dos presos do 8 de janeiro desde o início. Pessoa atípica, mãe atípica e defensora da neurodiversidade, também atua na defesa dos direitos de pessoas com doenças raras, incluindo exemplos presentes entre os presos do 8 de janeiro. Criou e mantém um banco de dados independente sobre esses processos no STF, analisando padrões decisórios e construindo leituras críticas embasadas em dados e experiência direta com o impacto humano dessas decisões.
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