NASCE O PRIMEIRO BEBÊ NO EXÍLIO
Ana Maria Cemin – 22/12/2024
A primeira criança nascida no exílio, a pequena Isabela, veio ao mundo no dia 2 de dezembro na Argentina. No dia em que realizei a entrevista com o pai, em 4 de dezembro, ele ainda não tinha visto a filha pessoalmente. Isso porque ele é um dos exilados políticos do Brasil e vive com o receio de ser preso na Argentina. O simples ato de ir até o hospital para acompanhar o nascimento de Isabella poderia ter desestabilizado totalmente a família. Então, o exilado político ficou em casa aguardando a chegada da esposa, enquanto cuidava do primogênito do casal.
A história desse brasileiro de 30 anos se assemelha a outras que contei, mas penso que cada relato tem as suas peculiaridades, razão pela qual sigo usando meus conhecimentos profissionais para dar voz às vítimas do 8 de janeiro.
Para a família estar unida nesse momento, a esposa D., 31 anos, precisou percorrer mais de 3 mil e 200 quilômetros dirigindo dia e noite, com o filho Derick, 5 anos, sentado na cadeirinha no banco traseiro. O marido foi condenado a 13 anos e meio de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, sem direito a recurso a outra instância, e, desde 19 de abril, tem mandado de prisão expedido pelo Gabinete do Ministro Alexandre de Moraes. Ainda em 15 de abril, o patriota saiu de Águas Claras, cidade satélite de Brasília, DF, onde residia com a família, e foi embora sozinho para a Argentina, onde se encontra até hoje.
Hoje eles estão unidos novamente. Mas até quando, se a anistia não acontecer?
A história desse jovem casal de brasileiros exilados você conhecerá pela voz do próprio exilado.
“Nasci em uma família humilde. A minha mãe é do Maranhão e trabalhou a vida toda como empregada doméstica, inclusive no período em que moramos em Brasília. Depois de um tempo, morei em Anápolis, GO, quando passei a ter interesse por mecânica de moto e fiz cursos para poder trabalhar com isso. Nesse tempo, conheci na internet a minha esposa D., do Pará. Por um ano, namoramos sem nos conhecer pessoalmente, até que mudei para o estado dela e abri uma mecânica de moto. Isso foi em 2016. Os negócios por lá não andavam tão bem e, em 2019, voltei para Anápolis para procurar trabalho em oficinas mecânicas, mas só consegui em Brasília.]
NUNCA TINHA VOTADO NA VIDA
Ao mudar para Águas Claras, cidade satélite de Brasília, segui a minha vida e conquistei o meu espaço, comprei um carro e logo virei pai, com o nascimento do Derick.
Aos poucos comprei os materiais para abrir minha própria mecânica de moto Águas Claras, o que aconteceu em dezembro de 2021, e convidei o irmão da minha esposa para trabalhar comigo. Ele veio de Belém com a esposa e filhos, e em oito pessoas moramos dentro do ponto da oficina. Era uma lojinha pequena e como eu estava iniciando meti minha cara, me capitalizei vendendo um Celta que eu tinha na época, e prosperamos.
Em 2022, com o início das eleições, o meu cunhado, que é bolsonarista, acabou me convencendo de votar e eu fui atrás de pagar as multas e deixar o meu título em ordem. Eu nunca tinha votado na vida. E pensei comigo: agora vou votar e eu tenho certeza de que esse voto é a coisa certa a fazer.
Eu brinco sempre que na primeira vez que eu voltei, acabei preso.
Eu participei das motociatas, um movimento sempre muito pacífico que enchia os meus olhos, por ver uma manifestação com tantas pessoas com um mesmo objetivo. Então veio a eleição e todos nós estávamos com uma expectativa muito grande da vitória do Bolsonaro.
Lembro que eu estava no Parque Taguatinga quando soube da eleição de Lula e fiquei muito triste, e no mesmo dia estourou os movimentos de protesto às eleições em vários locais do Brasil. Eu comecei a participar do QG de Brasília, por entender que esse era um movimento muito pacífico.
No dia 8 de janeiro, esperei a minha esposa voltar da escola dominical da Igreja, almoçamos e, por volta das 15h30, falei que estava com vontade de ir à manifestação na Esplanada. Ela respondeu com uma represália e disse que eu estava deixando de ir para igreja por preferir ir aos atos políticos. Retruquei que a manifestação era a forma que tínhamos de lutar pelo bem da nossa pátria.
Mesmo não querendo ir, ela acabou concordando e foi junto. No caminho pegamos a cunhada D. (uma história a parte, porque apanhou da polícia no Palácio do Planalto naquele dia e foi presa) e seguimos. Estacionei perto do Banco Central e descemos à pé bem devagar, chegando por volta das 16 horas na Esplanada.
A minha esposa e o meu filho ficaram longe da manifestação por questão de segurança, mas eu e a D. fomos em direção ao Planalto e lá observamos pessoas ajoelhadas rezando aos pés dos soldados do exército e outras subindo a rampa. Nós dois subimos junto e aproveitamos para usar os banheiros.
Tudo já estava todo quebrado ao chegarmos e era possível ver pessoas esquisitas utilizando toucas pretas que escondiam o rosto. Olhei pela vidraça a confusão que estava ocorrendo do lado de fora e a minha cunhada falou que era melhor sair de lá de dentro. Discordei por acreditar que ninguém iria mexer com a gente naquele local, porque não estávamos fazendo absolutamente nada de errado.
O conflito que assistíamos do lado de fora também começou a acontecer dentro do prédio, com ataques de policiais de fora para dentro do Palácio do Planalto. A polícia jogava bombas e lembro que não demorou para ficarmos sufocados. As pessoas caiam no chão e a minha cunhada passou muito mal, além de estar aos gritos.
Olhei ao redor e vi, em meio à fumaça, uma luz. Vinha de uma porta de emergência por onde o pessoal estava saindo do prédio com a ajuda de soldados do Exército. Pensei em correr para lá, mas a D. não estava em condições de caminhar e a minha decisão foi de não a abandonar.
Em seguida, a polícia entrou e gritou que estávamos todos presos. Eu pensei que seríamos encaminhados à delegacia e logo após seríamos soltos. Afinal, se não tínhamos cometido crime algum, então não tinha razão para sermos presos!
Passei por um interrogatório com abordagem agressiva na Delegacia de Polícia, no qual eu fui acusado de ter quebrado. Um dos policiais disse que sabia que eu tinha uma oficina em Águas Claras e repetidas vezes me chamou de covarde, que eu era incapaz de confessar o meu crime. Eu me senti muito impotente diante dos policiais, porque sempre fui honesto e procurei fazer o certo.
Depois disso, fiquei preso sete meses no Presídio Papuda. Nesse meio tempo a minha oficina estava aberta, sob os cuidados do meu sócio. A relação não estava boa, então encerramos a sociedade. Procurei, então, um novo lugar para começar do zero, com a consciência de estar numa situação diferente e que a qualquer tempo eu poderia ser preso novamente. Mas a clientela foi voltando, segui trabalhando como sempre, muito dedicado, mas cheio de angústia pelos acontecimentos de 8 de janeiro.
Nessa época, o meu filho Derick ainda estava com quatro anos, estava superando aos poucos o sofrimento pela minha ausência, e a minha esposa suspeitou estar grávida. Fez vários testes e todos com resultado negativo.
No terceiro ou quarto mês da mecânica aberta, com a minha mulher fazendo corrida de aplicativo para completar a renda, começou uma conversa de que todos os presos políticos como eu, que utilizavam tornozeleira e aguardavam o processo andar no STF, voltariam para o presídio.
Eu tinha feito um contrato de locação da sala por três anos com o proprietário, não tinha apoio de ninguém para ajudar a minha família se eu faltasse, então tive que pensar muito numa saída. Cheguei a adoecer e ficar com febre alta de até 41°C por tanto temor. Eu delirava de febre e eu sabia que aquilo era consequência de tanta opressão. E foi com esse estado de saúde, totalmente debilitado, que decidi sair do Brasil e buscar asilo na Argentina.
Cheguei doente na Argentina e fui melhorando aos poucos, e no final de um mês já tinha conseguido trabalho para me sustentar. A minha esposa ficou no Brasil para cuidar da oficina e no meu lugar deixei um mecânico contratado. O que entrava de dinheiro dava para pagar o funcionário e comer. Nada mais. Decidimos que ela entregaria o ponto e o proprietário foi justo e não cobrou multa, por entender a grave situação em que nossa família se encontrava.
Minha esposa, então, vendeu tudo o que tínhamos na nossa oficina e reuniu dinheiro para viajar. E o mais incrível, ela descobriu que de fato estava grávida, de cinco meses!
VIAGEM
Nós tínhamos comprado um Renault Kwid totalmente financiado para que a D. pudesse fazer as corridas de Uber. Em agosto, ela decidiu vir para a Argentina para reunir a nossa família novamente. Lotou o carro com o que pode, colocou o nosso filho sentado na cadeirinha de criança e iniciou a longa jornada desde Águas Claras até Buenos Aires, dirigindo.
A primeira parada foi em São Paulo, após percorrer mais de 1 mil quilômetros. Na manhã seguinte, 7 horas, já estava na estrada e não parou até chegar em Dionísio Cerqueira, SC, percorrendo mais 966 quilômetros. De lá veio para Buenos Aires dirigindo mais 1,3 mil quilômetros.
D. me disse que passou mal durante a viagem seja por estar grávida ou por estar angustiada com toda a situação. Quando chegou na Argentina ainda sofreu um choque cultural enorme, em especial com a alimentação. Já na descida foi complicado, porque nós somos de uma região onde se come açaí com peixe, tacacá, vatapá, maniçoba, pato no tucupi…e nada disso tem no Sul do Brasil e aqui na Argentina.
Ao chegar, D. só dizia que estava muito cansada, que não aguentava mais e que só faltou dormir no volante.
PERSEGUIÇÕES DENTRO DA ARGENTINA
Até ela chegar aqui, não estava ocorrendo essa perseguição dos presos políticos na Argentina, fato iniciado em outubro. Com isso, não pude acompanhar a minha esposa nesses últimos dias até ela ganhar a nossa filha no hospital. A mãe dela veio de Ananindeua, município do Pará, para cuidar dela aqui. E isso tem nos ajudado muito, porque eu sigo trabalhando normalmente, para sustentar a família.
Eu saio de casa muito cedo, ainda na madrugada, e retorno às 21 horas (atualmente não está mais trabalhando). O que ganho nos garante a dignidade. Estamos nos adaptando aos poucos ao frio, à língua e aos hábitos. Me preocupo muito em ser preso aqui e deixar a minha família sem qualquer renda.
Mas confesso: não deixei de sonhar. O nascimento de minha filha Isabela é mais um motivo para eu querer recomeçar aqui, abrindo uma oficina mecânica para conserto de motos.”
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