“FILHOS DA PÁTRIA” ESTÁ NO SEGUNDO EXÍLIO

Por Ana Maria Cemin – 23/08/2024

Contar a história do “Filhos da Pátria” como ficou conhecido Rafael Tamanho não pode ser de uma só vez, até porque tem a fase inicial de saída do Brasil após o 8 de janeiro, quando ele foi perseguido e poderia ter sido preso se não buscasse asilo político, e a fase que veio depois das prisões de refugiados no Paraguai, entregues pela Interpol, obrigando Rafael a seguir por vários países até chegar no local onde se encontra hoje, onde aguarda a documentação de asilado. As linhas que seguem tratam da vida do Rafael até agosto do ano passado e considero muito elucidativa, porque revela a intenção de quem participou do movimento de rua nos últimos anos.

O meu entrevistado tem 35 anos e é marido, pai de três filhos entre nove e três anos (todos autistas), empreendedor do setor de e-commerce e muito apegado aos seus familiares que ficaram no Brasil. Está no autoexílio desde 8 de janeiro, quando tudo deu “errado” no movimento verde-amarelo. Milhões de brasileiros foram às ruas no Brasil e no exterior pela causa que fez Rafael largar as suas rotinas no final de 2022. Rafael me procurou em agosto de 2023, oitavo mês fora do Brasilzão, como ele chama. Apresento nas linhas que seguem a vida recente de Rafael Tamanho, de São José dos Pinhais, PR, formado em Comércio Exterior e pós-graduado em Marketing. A história dele é única, porém ela se entrelaça com a de milhões de brasileiros que acreditam num Brasil sem corrupção, que respeitam as tradições da família e da fé, além de lutarem pela liberdade e soberania. Por meio dos vídeos que ele fez diariamente nos QGs de Pinheirinho, de Curitiba, PR, e de Brasília, DF, eu mesma acompanhei o movimento à distância, como muitos outros brasileiros. Confere aí!

PRIMEIRO EXÍLIO: PARAGUAI

RELATO DE AGOSTO DE 2023

“Nos últimos dez anos comecei a acompanhar a política, em especial depois da manifestação pelos R$ 0,20 de aumento de ônibus no governo de Dilma, mas nunca me posicionei publicamente, nem mesmo na mesa durante as refeições em família, quando é comum ter um debate. Os familiares comentavam e eu ficava quieto para evitar atrito por divergência de opinião. Eu queria ficar de bem com todos.

No ano de 2022, alguma coisa aconteceu comigo. Eu acompanhava as pesquisas eleitorais e o resultado não batia muito com o que eu via nas ruas e, ainda, percebia pessoas ao meu redor que falavam mal do presidente Bolsonaro por desconhecer as realizações de seu governo. Ignoravam a realidade. Como eu acompanhava as lives do presidente nas quintas-feiras, durante todo o seu governo, possuía um bom repertório de conhecimento que não chegava para os brasileiros pelos veículos de Comunicação tradicionais.

Surgiu então a ideia de abrir um canal no TikTok para fazer recortes de entrevistas das lives e mostrar a informação correta, mas nunca coloquei minha identidade pessoal nos vídeos. Era uma tentativa de despertar as pessoas, mostrando os assuntos da direita e do conservadorismo, mas ainda queria me dar bem com todos, evitando discussões sobre política. Após o primeiro turno, intensifiquei o meu trabalho, inclusive deixando de lado a minha empresa para ajudar na reta final da campanha.

Rafael e a esposa nas manifestações.

Participei de carreata na minha cidade São José dos Pinhais, entrava nas madrugadas fazendo recortes de vídeo para depois publicar, comentava com todo mundo, fazendo a informação fluir. Foi só nesse momento que eu comecei a fazer campanha aberta, incentivar pessoas e explicar para todos que conhecia o porquê de escolher um lado e não o outro. Foi uma verdadeira libertação para mim, porque eu nunca me posicionava. Nessa minha nova versão, fiz tudo o que eu podia inclusive participar como fiscal do PL no segundo turno durante a votação inteira.

Fui dormir frustrado no dia 31 de outubro, não acreditando no resultado das eleições, mas antes de me deitar vi que começaram a surgir nos grupos de WhatsApp declarações de insatisfação de muita gente. Acordei no dia 1º de novembro com aquele gosto amargo na boca, ainda muito inconformado e soube que tinha caminhoneiros se manifestando contra o resultado no Contorno Sul de São José dos Pinhais. Fui para lá, lembro que estava frio naquele dia, e tomei a decisão de ficar ali com aquela gente e fiz o meu primeiro vídeo colocando a “minha cara” chamando as pessoas para participar do protesto.

Quem estava no local aguardava a posição do presidente Bolsonaro sobre a apuração das urnas e ele apenas disse o que nós queríamos ouvir: que as manifestações eram bem-vindas. Nisso, o pessoal falou que o local certo para as nossas manifestações era em frente aos quartéis. O mais perto para mim era o de Pinheirinho. Em Curitiba, tínhamos mais dois QGs: em Bacacheri e de Boqueirão.

Numa manifestação contra a censura e a imposição do medo à expressão de ideias.

NO PRINHEIRINHO ATÉ 5 DE DEZEMBRO

Quando fomos para a frente do quartel não sabíamos se ficaríamos 48 horas ou 72 horas. Estava tudo muito indefinido, mas todos que estavam lá queriam a transparência no resultado da eleição. O meu primeiro vídeo feito com transmissão desde o local dos acontecimentos foi na rodovia no dia 1º de novembro de 2022, pelo TikTok e foi lá que caiu pela primeira vez a minha conta e fiz uma segunda para continuar com o meu trabalho de relatos. A conta caiu por causa das diretrizes da plataforma, e foi provocado pela denúncia de petistas. Durante os mais de dois meses que se seguiram eu tive 33 contas derrubadas só no TikTok. Quando bloqueava uma, criava outra e seguia com o meu objetivo de mostrar para as pessoas o que acontecia ao meu redor no QG, tentando desvendar o que era verdade.

Nesse tempo eu deixei o trabalho de lado na empresa, porque eu acreditava que precisávamos fazer alguma coisa para não deixar o Brasil cair numa armadilha socialista. No início, eu dormia dentro do carro próximo ao QG, depois levei barraca. Fiquei acampado e voltava para casa duas vezes por semana para tomar banho, trocar as roupas e passar na empresa, que estava sendo tocada pelo meu irmão.

Fiquei transmitindo informações de forma voluntária para que as pessoas soubessem a situação do nosso movimento que era ignorado pela imprensa. Não passava pela minha cabeça que demoraria tanto tempo para termos uma resposta sobre o que estava sendo reivindicado: o código-fonte que revelaria se a nossa suspeita estava certa ou errada. Aliás, o clima era de muita confiança de que os militares conseguiriam o código-fonte.

No acampamento de Pinheirinho todos nós tínhamos uma rotina para poder organizar a limpeza, segurança e comida. O tempo foi passando e a nossa organização se consolidou e, então, tínhamos pessoas que permaneciam em tempo integral, como eu; pessoas vinham durante o dia e voltavam para casa à noite; e outras que compareciam apenas em finais de semana e feriados. Lembro que em 2 de novembro choveu e fez muito frio em Curitiba e uma senhora de mais de 80 anos, a Dona Ana, estava lá mesmo assim. Um vídeo com ela cantando o hino, toda corcunda pela idade, viralizou muito. Em dias de maior movimento chegamos a ter gente espalhada por até 1,5 km de distância da frente do quartel. Era bastante! Durante a semana, a maior concentração era no período noturno. As pessoas trabalhavam e passavam no Pinheirinho para se manifestar, participar de um louvor e fazer oração e, após, iam para as suas casas.

O nosso QG ficava num amplo estacionamento que abrigou entre 400 e 600 pessoas acampadas. Tínhamos carro de som, banheiros químicos e levantamos uma barraca para a alimentação. Nos finais de semana e feriados, o local ficava lotado de pessoas, porque toda a nossa comunicação funcionava muito bem e nós convidávamos as pessoas a participarem. Tínhamos o maior cuidado com as doações feitas, porque acontecia em várias partes do Brasil de chegar água e comida “batizadas”. Era comum infiltrados entrarem nos acampamentos e a gente tinha muita consciência disso. Muitos empresários, como eu, tinha deixado os seus negócios para reforçar as trincheiras.

Os jornalistas não divulgavam nada do movimento e, quando faziam, mentiam muito, o que deixava os manifestantes chateados. Lá no QG fui procurado por um sujeito que se dizia da mídia independente e que queria fazer uma gravação. Ele viu um vídeo meu por acaso e me procurou. Eu falei que ele era bem-vindo, como todas as pessoas. Só que ele veio com um carro adesivado com a palavra “Imprensa”, num domingo à tarde, lotado de gente. Quando percebi ele estava sendo acuado por algumas pessoas que estavam mais exaltadas com a presença de um jornalista. Nesse dia me impus e falei que não era assim que as coisas deveriam funcionar. Nós, patriotas, deveríamos sempre agir de maneira pacífica, defendendo a nossa maneira de ser. Quem é patriota não xinga, não joga lixo no chão, não briga. Esse dia me marcou por ser o único episódio em que algumas pessoas saíram do controle, mas logo se reposicionaram.

O FOCO AGORA É BRASÍLIA

Entrou dezembro e senti a necessidade de ir a Brasília e continuar as transmissões de lá. Eu nunca tinha sido uma pessoa de posicionamento político, mas senti que devia seguir em frente e fazer a minha parte para a realização de um sonho que era de milhões de brasileiros. A cada dia que passava no QG do Pinheirinho, eu via aumentar o clima de frustração quando à resposta que queríamos de nossos governantes. As pessoas desistiam no meio do caminho. Lembro que nas primeiras semanas, muitos empresários deixaram os seus negócios de lado e estavam firmes, com presença e ações de manutenção da estrutura. Era uma reação espontânea, sem liderança, mas a incerteza foi cansando e o local foi esvaziando.

 Encontrei um empresário na rua, num dos dias que voltei para troca de mudas de roupas, e perguntei por que ele tinha sumido do QG. Como resposta ele falou: “Não vai dar mais nada. Vou cuidar do meu negócio, porque é ele que vai trazer dinheiro para poder tocar a vida”. Lembro de ter dito que o foco era continuar na luta, pois se não fosse naquele momento não seria em outro. Se queremos ser livres para fazer os nossos negócios, precisamos defender a economia do País. Fiquei mal impressionado com o posicionamento dele na época, porque eu estava numa crença tão grande de que aconteceria algo positivo a partir do nosso movimento, que não passava pela minha cabeça abandonar a causa.

Concentrar em Brasília foi a forma que entendi como certa para motivar os brasileiros a continuarem manifestando a sua opinião de forma ordeira e pacífica. Consegui reunir recursos para comprar a passagem aérea para ir a Brasília e fui com cara e coragem, sem levar barraca. Durante o período em que fiquei no QG do Pinheirinho conheci o Lucas Yuki, também do Paraná, e eu mesmo fiz o convite para que viesse a Curitiba. Ele fazia vídeos e estava sendo criticado pela Direita por falar desde casa, da sua cidade Cruzeiro do Oeste, que fica a cerca de 600 quilômetros da capital do nosso Estado. Ele veio, mostrei tudo para ele: onde ficavam os sanitários, o local de banho e a barraca de comida. Ficamos amigos e ele foi antes para Brasília e, então, eu tinha pelo menos uma referência no meu novo QG.

No início de dezembro, muitas caravanas de patriotas se dirigiam a Brasília e o QG estava movimentado. Chegando lá, encontrei o Lucas e ele me convidou para ficar na mesma barraca que ele. É importante fazer um parêntese aqui e explicar que na chegada eu senti a diferença entre a atmosfera patriótica de Curitiba e Brasília. No meu estado, éramos muito unidos, éramos uma família. Por ser uma estrutura bem menor, todo mundo se conhecia. Em Brasília, não senti o espírito de paz, de fraternidade, e logo percebi que algumas pessoas que ali estavam tinham intenções que não era a causa que mobilizou tantos brasileiros.

Algumas pessoas ficavam em cima do caminhão falando coisas que não batiam, mas pensei que era preciso ignorar algumas coisas e concentrar no que era importante. O Yuki estava numa barraca de um senhor de Paranaguá, PR, e eu lembro que eram várias barracas reunidas. Ele me disse: “Tem uma menina da barraca que foi para casa, então hoje você pode dormir por aqui. Amanhã eu te ajudo a arrumar um local”. Fiquei e às 22 horas, quando eu estava dormindo, chegou uma turma que me acordou e disse que aquele espaço era deles, que a menina tinha avisado que estava vago e eles tinham chegado de Joinville, SC, e que eu tinha que sair. Saí e dormi do lado de fora e, no dia seguinte, comprei uma barraca.

Minha rotina começou a se estabelecer. Com a ajuda de quem estava por lá, me ambientei rapidamente com toda aquela estrutura, e fui conhecendo gente de todo o Brasil, pois era comum chegarem caravanas de diferentes cidades de toda a Federação. Me posicionei em pontos estratégicos para a coleta de informações a serem transmitidas pelas mídias sociais. Meu esforço também era de ver o que estava sendo divulgado e que tinha realmente fundamentação, para não passar a frente o que é errado. Busquei ter o melhor discernimento do que estava acontecendo, porque os veículos de comunicação do Brasil praticamente ignoraram as razões pelas quais estávamos realizando o movimento e viraram as costas para nós. Vivemos um tempo de expectativas, esperando o dia seguinte sem saber se efetivamente alguma coisa iria acontecer que respondesse as nossas dúvidas sobre as eleições.

PRISÃO DO ÍNDIO SERERÊ

E DE OUTROS PATRIOTAS

No dia 12 de dezembro, teve aquele acontecimento da Polícia Federal, que culminou com a prisão do índio xavante Sererê, que segue preso até hoje. O que aconteceu na frente da sede da PF de Brasília, com queima de veículos, resultou numa operação chamada Nero e que levou muitos patriotas para os presídios, onde estão até hoje, ou estão foragidos com ordens de prisão do STF.

Nós saímos do QG e fomos para o Palácio da Alvorada, moradia presidencial, a convite da primeira-dama Michele Bolsonaro. Todas as vezes que tinha concentração lá eu fui. No dia 12, fui antes e reservei lugar para o cacique Sererê e sua família, além dos demais índios. Eu fui uma das primeiras pessoas a chegar no palácio, por volta da 1 hora da madrugada, para garantir um bom espaço para eles. Fiz a reserva com ajuda de outros patriotas.

A chegada das pessoas no Alvorada foi pelo meio da manhã do dia 12. Quando o cacique Sererê falou ao público ele pediu para que ninguém gravasse as suas palavras. O sol bateu nele e falou com bravura para todos nós que ali estávamos. Eu senti uma atmosfera meio diferente naquele discurso. Eu não lembro muito bem de todas as palavras do discurso, mas era de um forte sentimento patriótico. Tive a impressão de que ele já sabia que alguma coisa poderia acontecer com ele.

Quando ele e os demais índios decidiram ir embora, nós criamos uma escolta de patriotas para a saída até o carro, com um cordão de isolamento com cerca de 20 pessoas. Havia uma multidão no palácio e todos estávamos com medo de que alguma coisa negativa fosse acontecer, porque as ameaças contra a integridade física eram constantes. Eu mesmo recebia mensagens ameaçadoras no privado.

O Sererê entrou numa caminhonete branca com sua família e os demais índios entraram num ônibus. A partir daí eu fiquei tranquilo e fui atrás da minha carona para voltar ao QG, não sei o horário, mas era no pôr do Sol. Logo que pisei no QG ouvi a notícia de que o índio tinha sido preso. Os demais índios que não tinham ido para o Alvorada estavam frustrados com a notícia e queriam fazer um protesto. Estavam muito brabos, com pedaços de pau nas mãos e xingavam muito.

A tensão ficou no ar e lembro que uma das minhas seguidoras falou: “Rafael, eu acho que vai acontecer alguma coisa ruim hoje. É melhor você ficar no quartel. O nível de irritabilidade das pessoas por terem prendido um índio dava a entender que as coisas não estavam bem. Muita gente foi para frente da Polícia Federal e eu pensei bem e decidi dormir na casa da patriota, a convite. Eu já estava recebendo ameaças frequentes e queria ficar num lugar seguro e depois tomar a minha decisão.

Eu acompanhei tudo o que aconteceu em Brasília, aquele caos todo em frente à sede da Polícia Federal, com queima de veículos, no apartamento desses patriotas. Ou seja, acompanhei tudo de um lugar seguro e, na manhã seguinte, avaliei que estava tudo bem e poderia voltar ao QG: não fui preso, não me bateram, não fizeram nada comigo.

O Sererê não era a primeira prisão. Em 6 de dezembro, a Polícia Federal prendeu o empresário Milton Baldin, sob a alegação de incitar atos antidemocráticos, a partir de uma fala dele proferida no QG de Brasília, ainda em 26 de novembro. As informações dessa prisão do Baldin eu recebi diretamente do advogado que cuidava do caso dele, o Dr. Levi de Andrade.

VOLTA PARA CASA

Fiquei em Brasília até 25 de dezembro, inclusive passei o Natal por lá. A gente mantinha expectativa de algo acontecer, só não sabia quando ou como, e entendi que meu papel na capital federal tinha encerrado. Fiz as transmissões das informações e era o momento de voltar e ficar mais no QG de Curitiba. Eu fiquei três semanas fora de casa e estava preocupado com a minha esposa Lígia e meus filhos, e a saudade era muito grande. Com as ameaças recebidas, minha esposa pegou as nossas crianças e foi passar uma temporada na casa dos meus sogros, numa chácara localizada na região metropolitana de Curitiba.

Voltei para casa de carona com um patriota do Paraná e retornamos de carro para o nosso Estado. Lembro de que em meu retorno acompanhei pelas mídias a situação dos índios ocupando a Praça dos Três Poderes, pedindo a soltura do índio Sererê. Até acontecer a prisão do xavante, a gente ainda acreditava na mística que os índios brasileiros eram protegidos por uma lei maior. Isso tudo caiu por terra.

Minha carona terminou em Ponta Grossa, PR, e de lá peguei um ônibus e um Uber para reencontrar a minha família na noite do dia 26 de dezembro. Depois de dois dias matando as saudades, e de viver o reencontro emocionante, com as minhas crianças não desgrudando de mim, voltei para o QG do Pinheirinho. A estrutura estava bem menor, pois muita gente tinha desmontado as barracas e voltado para suas rotinas, restando um grupo mais persistente.

Depois do Ano-Novo, pensamos em voltar para Brasília e continuar protestando. “Eles têm que nos ouvir!”, era o que acreditávamos. O pessoal começou a se organizar para ir de ônibus e eu fui de carro para ficar mais livre para voltar para casa na hora que quisesse, sem depender de outros e para poder sair do QG, ir ao mercado com mais mobilidade. Então, em 6 de janeiro, eu estava de volta à capital federal e logo senti o clima de tensão no ar.

A gente não sabia o que poderia acontecer, porque Bolsonaro não tinha mais nenhuma caneta na mão, o Exército não tinha nenhuma resposta para nós e, também, a ausência de liderança no movimento alimentava os boatos de toda ordem. A pergunta naquele momento era: “O que fazer?”. O QG estava dividido em dois lados: um que continuava mantendo a ideia de que o lugar mais seguro era o QG, mas outra turma defendia que precisávamos acampar na Praça dos Três Poderes, continuando a manifestação ordeira e pacífica. Era só mudar o acampamento de lugar, já que os militares não ouviram o clamor, então o apelo deveria ser para o Congresso Nacional.  Essa ideia ganhou força nos dias 6 e 7 de janeiro.

Influenciadores começaram a defender essa ideia e chamavam os seus seguidores das mídias sociais para fazerem esse movimento na Praça, porém nunca ouvi que alguém tenha falado para quebrar prédios, fazer vandalismo. Os influenciadores que eu conheço falavam que tínhamos que acampar. Porém tinha a turma do caminhão de som e das barracas de comida que continuava dizendo para permanecer no QG. Eram duas visões muito diferentes.

CARAVANAS CHEGAVAM DE

VÁRIOS LUGARES DO BRASIL

 A partir do dia 7 de janeiro, o QG começou a receber muitas caravanas e não sabíamos direito o que fazer. Ainda na madrugada do dia 8 de janeiro, algumas pessoas começaram a descer para a praça, mas a maioria realmente foi somente no período da tarde. Uma multidão descia de forma organizada e eu desci também, e observava senhorinhas, senhores, cadeirantes e famílias inteiras. Todo mundo com bandeiras e eu fui caminhando com o povo e gravando meus vídeos e compartilhando com os seguidores. Sabíamos que, ao chegarmos, passaríamos pelos policiais que faziam uma revista para evitar que produtos perigosos passassem.

Além de transmitir os vídeos da descida, eu também acompanhava o que estava acontecendo pelas lives de quem tinha chegado mais cedo, mas foi somente ao chegarmos mais próximo é que percebemos que tudo estava tomado por pessoas, em todos os prédios.

O QUE AS PESSOAS FAZEM DENTRO DOS PRÉDIOS?

Eu não entendi a razão que levou as pessoas a entrarem nos prédios. Comecei a ver umas pessoas muito estranhas pegando pedras, destruindo a calçada, para jogar nas polícias e em vidros. Nada daquilo conectava com as pessoas dos QGs. Era um outro tipo de pessoa. Percebi nitidamente que tinha um grupo de pessoas pacíficas e ordeiras que começou a ajudar a entregar para a polícia aqueles que estavam fazendo atos de vandalismo.

 O gramado da praça estava virado em campo de guerra. Não encontrei por lá nenhum dos influenciadores com os quais estava acostumado a conviver. Eu estava sozinho! De vez em quando eu via um que outro patriota que eu tinha visto no QG, em meio aquela fumaça das bombas jogadas para tudo quanto é lado. Ouvi as pessoas falarem que era para descer um pouco mais e ocupar a rua. Umas seguiam essa orientação, outras não. Eu, particularmente, estava preocupado em não deixar quebrar, por ser algo fora do nosso repertório patriótico. Outros pareciam ter foco em pegar os infiltrados.

 O fato era que tínhamos caído numa armadilha. Junto à rua tinha um cordão de isolamento e, além das bombas, começamos a receber spray de pimenta. Eu achei uma máscara de EPI no chão e coloquei no rosto. Resolvi sentar e aguardar os acontecimentos. Fiz um vídeo rápido pelo Telegram para mostrar o que estava acontecendo e foi justamente este vídeo que usaram para falar que eu era uma das pessoas que estava à frente de tudo, liderando quem quebrou. Ou seja, fizeram uma maldade muito grande.

Por volta das 17 horas, falei por telefone com a minha esposa e ela informou que o presidente Lula tinha assinado a intervenção federal. Era o horário em que eu estava voltando, junto com todos os patriotas, para o QG. A Polícia Federal nos expulsou da praça utilizando helicópteros e as pessoas recuavam cada vez mais, os semblantes eram todos de pessoas muito abatidas, com um forte sentimento de terem sido enganadas.

Na metade do caminho para o QG, eu senti que não deveria voltar para o acampamento e fiquei numa torre de televisão. Olhei as mídias sociais e vi muito vídeos no TikTok pedindo a minha prisão e a do Lucas Yuki. O pessoal da Resistência Joinville também estava na linha de tiro do pessoal da esquerda. Esses vídeos colocados no TikTok pedindo a minha prisão ou “zoando” da gente começaram a se avolumar, e influenciadores de esquerda com grande número de seguidores insistiam em me acusar. Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo e do que tínhamos vivido naquele 8 de janeiro e a minha vontade foi de sair de Brasília. Peguei o meu carro e fui para a cidade vizinha.

MEDO DE FICAR NO BRASIL

No dia seguinte à depredação dos prédios da República, que até hoje não se sabe quem fez e se teve uma organização por trás de tudo isso, foi criada uma conta no Instagram chamada “contragolpe”. O canal foi criado para as pessoas que quisessem denunciar quem elas achavam que poderia estar envolvido no quebra-quebra. Algumas pessoas me colocaram lá como se eu fosse um dos incentivadores e eu pensei comigo: “Cara, isso é muito perigoso!”. A partir daí fiquei imaginando como explicar e provar que aquilo tudo era mentira, que eu não tinha nada a ver com o ocorrido em 8 de janeiro. Temi pela minha segurança ao olhar aquela enxurrada de mensagens maldosas.

A coisa estava tão esquisita que a esquerda começou a fazer uma campanha para denunciar pessoas e vi vídeos específicos pedindo que as pessoas mandassem e-mails para o governo para me denunciar como responsável pelo que aconteceu no dia 8. Uma menina pegou vários vídeos meus feitos no acampamento, filmou isso com ela mandando para a Polícia Federal.

De 8 para 9 de janeiro, eu tinha dormido num posto de combustível dentro do meu carro, mas ao acordar decidi voltar para casa. Soube que várias pessoas tinham sido presas naquela noite, inclusive alguns que eu conhecia e acabaram entrando nos prédios para se protegerem. Porém, a maioria foi presa no QG. Fiquei sabendo que o Eduardo Gadotti Murara, da Resistência de Joinville, não cogitou a possibilidade de as pessoas serem levadas ao presídio por conta de se manifestar e tinha plena consciência de sua inocência, portanto ficou no QG naquela noite de 8 para 9. Foi preso! Muitas pessoas pensaram como ele: não tendo culpa, por que fugir? Mas essa não foi a lógica das prisões.

Outros mais assustados, como eu, sentiram que algo estava muito errado e deixaram o QG. O Lucas, por exemplo, está escondido até hoje em algum lugar no Brasil, porque foi ameaçado na cidade dele, Cruzeiro do Oeste, PR. Um grupo de petistas começou a persegui-lo, prometendo agir com violência. 

No meio do caminho da volta para casa, quando estava em Minas Gerais, decidi me refugiar no Paraguai. Tinha receio de ser preso injustamente e temia pela minha integridade física. Dirigi noite e dia, sem saber o que aconteceria, com muito temor. Eu só queria chegar do outro lado da fronteira. Cheguei e me instalei numa cidade fronteiriça chamada Pedro Juan, onde fiquei dias muito quieto. Só avisei a minha família, mas não disse muita coisa. Nem tinha o que dizer!

INCERTEZA E DEPRESSÃO

A minha vida desmoronou com o 8 de janeiro. Os dias foram passando e descobri que muitos patriotas estavam chegando na fronteira. No início, eu não pedi asilo, porque saí do Brasil por me sentir ameaçado por pessoas da esquerda. Elas publicavam o tempo todo em tom muito agressivo. Mas conforme o tempo foi passando e eu vendo que a situação contra os patriotas só escalava mais, decidi ficar no exílio.

Tentei me organizar nas primeiras duas semanas, mas foi horrível. A minha cabeça não estava funcionando e eu me sentia muito mal. Estava sozinho, depressivo e incomunicável. Não estava mais a frente do meu trabalho e as vendas começaram a cair. Foi quando eu me apeguei à leitura das escrituras (Bíblia) e a orar para ter o entendimento e a clareza. Na minha meditação não achei lógica alguma sobre o que estávamos vivendo, nem tinha qualquer arrependimento por ter feito parte do movimento verde-amarelo. Percebi que tudo estava certo e que eu tinha usado a minha consciência ao me unir a outros brasileiros. Porém, tudo isso não tirou a sensação de estar num deserto. Tinha medo de falar com as pessoas.

Meu isolamento incluiu deixar o Instagram no privado, como também as demais redes. Nesse deserto, fiquei sabendo de um grupo de patriotas que estava passando pela cidade e tive com quem conversar por quatro ou cinco dias. Isso foi bom para meu estado emocional, pois tive um pouco de consolo e me afastei do sentimento de susto decorrente das ameaças. Nessas abordagens, esses agressores falavam o meu nome completo, o nome da minha esposa e da minha empresa. E por aqueles dias eles fizeram compras da minha loja, pelo Mercado Livre, e abriram reclamações para prejudicar a reputação do meu negócio. Perdi ranqueamento e toda essa perseguição me fez ver que a minha casa não era mais segura para a minha família.  

O RECOMEÇO

Depois de três meses morando longe da minha esposa e filhos, providenciei o meu asilo no Paraguai. Juntei todas as comprovações referentes às ameaças sofridas e levei para a CONARE – La Comisión Nacional para Apátridas y Refugiados. Me deram o refúgio na hora. Os dados que apresentei eram muito consistentes, pois consegui mostrar, inclusive, que a minha esposa e filhos viviam sob ameaça no Brasil, tanto que tínhamos receio até mesmo das crianças irem à escola. No quarto mês de exílio, consegui ajuda para trazer a minha família para o Paraguai, aluguei uma casa e fui esgotando todos os meus recursos disponíveis. Usei cheque especial, cartão de crédito e até o investimento que tinha feito para os meus filhos.

As vendas da minha empresa caíram muito: o relatório do mês de julho de 2023 em relação ao mesmo mês em 2022 revelou que as vendas ficaram em 30%. Como temos três funcionários, a prioridade foi o pagamento da folha. Reduzimos os nossos custos ao máximo e estamos descobrindo maneiras de sobreviver longe do Brasil e com rotinas novas. Fiz bicos de professor aqui, substituindo um amigo. Estudei muito antes de entrar na sala de aula porque o conteúdo de Química nunca foi o meu preferido. Foi sensacional, porque os alunos gostaram muito e começaram a me chamar de professor Jesus, por causa da minha aparência.

No oitavo mês fora do Brasil a minha expectativa é de recomeçar a vida por aqui, levantando recursos com a venda ou rifa de dois carros antigos que tenho. A minha esposa é terapeuta integrativa e está iniciando um trabalho com as pessoas aqui na cidade. Eu penso em abrir uma empresa de marketing, com ênfase em design, além de criar cursos que domino bem, como tráfego pago, gestão de conteúdo no Instagram, patente de marca e recursos do google.

Vamos começar uma vida nova, que eu não sei bem como será. Lembro que em dezembro do ano passado, quando eu estava no QG de Brasília, creio que era dia 17, um sujeito dos Estados Unidos conversava comigo e fez uma pergunta: E se tudo der errado, Rafael? A pergunta me desconcertou, porque jamais passou pela minha cabeça que o nosso movimento conservador passaria por um trauma tão grande, ao ponto de eu não poder voltar para a minha vida.

A resposta à pergunta que ele fez, eu só poderei responder com a caminhada que iniciei em 8 de janeiro. Sei que vou empreender novamente e que Deus me fortalecerá. Ao chegar, a minha família passou por tudo isso comigo e, ainda, meu cachorro adoeceu e quase morreu por pegar carrapato. Fez transfusão de sangue, a um custo caro para nós, e conseguimos salvá-lo com os recursos que levantamos das sessões de terapia que minha esposa fez por aqueles dias. E pasmem: o nosso cachorro teve como dieta arroz com frango por um mês, enquanto a nossa refeição foi macarrão com alho e óleo, por falta de condições financeiras. A geladeira permanece um pouco vazia, mas estamos confiantes no nosso recomeço.

Com o exílio e os meus momentos de “deserto” eu mudei. Sinto que sou uma pessoa diferente e a minha esposa reconhece isso em mim. Nada foi em vão. Escolheria novamente este caminho, por ele ter fortalecido a minha fé e a minha confiança.

Rafael está em outro país que não o Paraguai, seu segundo exílio. Sua família chegou nessa semana de agosto (2024) e agora ele reconstruirá a vida. Essa parte da história, entre agosto do ano passado e a atualidade fica para uma próxima conversa com o “Filhos da Pátria”.

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