
(Por “Luis Fernando Verissimo”)
Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas.
E, de repente, perguntas que nunca deveriam existir se tornam rotina:
Onde está Cris? Em qual cela? Em qual cidade? Ainda está viva?
Cristiane da Silva é agora essa interrogação suspensa no ar.
Estava no 8 de janeiro. Foi presa. Saiu com tornozeleira. Teve medo. Fugiu.
Cruzou fronteiras, tentou refazer a vida nos Estados Unidos.
Deportada, voltou como pacote extraviado, entregue ao “destino” decidido por outros.
E sumiu dentro de papéis, protocolos, relatórios frios.
Não foi sequestro de cinema.
Foi um desaparecimento burocrático — e esse é sempre o mais cruel.
A família liga. Espera. Ninguém responde.
A irmã não sabe se a transferiram.
A mãe deita sem sono, olhos abertos, imaginando se a filha comeu.
Amigos tentam decifrar um enigma sem letras, feito de portas fechadas.
Certa vez escrevi que os tristes acham que o vento geme;
os alegres acham que ele canta.
Mas nas celas, o vento é o mesmo, passa por grades e ouvidos.
Uns ouvem gemidos, outros se agarram ao sopro como canto de esperança.
O mesmo vento tem duas vozes,
e cada detento escolhe qual ouvir para aguentar mais um dia. Não sei o que Cris está ouvindo agora, isso me dói.
Em outra ocasião escrevi que falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida coerência dos lúcidos.
Sei que a lógica do cárcere é absurda.
Roupas e documentos são queimados “por procedimento”.
Visitas são proibidas em nome da saúde, quando a própria vida já era doença.
Não sei quem é Cris hoje: se do mundo dos “loucos” ou se já “quebrada” para a lucidez.
Certamente o “lúcido” chama tudo isso de legalidade.
Já os “loucos” sabem que é pura insanidade.
Esses ditos “lúcidos” aceitam relatórios, carimbos, prazos.
Enquanto os “loucos” são os que choram ao perguntar pelo nome, insistem em não aceitar que um ser humano é estatística.
Eu, na minha falta de “lucidez”, ainda creio que é só na “loucura” que reside o amor.
E isso me faz questionar: onde está Cristiane?
E a angústia maior não está no que se sabe.
Está no que não se sabe.
Não é a cela, é o vazio sobre qual cela.
O não saber onde procurar, o que temer.
E pensar que toda mãe teme o pior:
imaginar a filha cercada por criminosos endurecidos, por guardas gritando seu nome como número,
imaginar a dignidade sendo arrancada pouco a pouco.
Cristiane hoje é um prato vazio de fome e justiça, telefone mudo que não disca esperança,
oração repetida pela irmã, lágrima da mãe que sonha um reencontro.
Cris é a lembrança de que o Direito, que deveria ser farol,
se apagou na penumbra da arbitrariedade.
Vivemos cercados por alternativas, pelo que podíamos ter sido.
Cris poderia estar em casa, à mesa, sorrindo entre os seus.
Poderia estar planejando a vida, estudando, trabalhando. Mas a injustiça esbarrou com ela. Quis o destino que o dono do inferno, Moraes, viesse buscá-la.
Agora, é ausência.
E a família passou a viver cercada, não por alternativas,
mas por impossibilidades.
Assim, no findar do dia, da semana, do ano, no fechar do calendário,
quando a noite cai e o silêncio das celas toma conta,
a pergunta que continua atravessando muros, tribunais e corações é:
onde está Cristiane?
E, ao procurá-la, não estaremos todos nós também nos procurando? Tentando achar nossa humanidade?
*O autor do texto prefere ficar anônimo e homenageia o escritor falecido recentemente, por quem sempre teve muito apreço.
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