
Ana Maria Cemin – 21/07/2025
Assisti ao documentário Apocalipse nos Trópicos, lançado globalmente pela Netflix neste mês, dirigido pela cineasta Petra Costa. O ponto de partida do filme é a simbologia do apocalipse cristão, mas sem se aprofundar na espiritualidade. A intenção é persuadir o público de que os evangélicos estão se “apropriando” da política brasileira. Nesse tom, o documentário retrata líderes religiosos como protagonistas de um projeto teocrático disfarçado de missão divina.
Embora tenha o Brasil como foco, o filme provoca reflexões sobre movimentos nacionalistas religiosos em outros países — como os Estados Unidos — sempre com a narrativa de ameaça à democracia. Um dos principais financiadores do projeto é Brad Pitt, por meio da sua empresa Plan B Entertainment, conhecida por apoiar produções com forte conteúdo político. O documentário também conta com o apoio da Impact Partners e da Peri Productions.
Para entender as motivações por trás da obra, é preciso conhecer a trajetória de Petra Costa. Nascida em uma família envolvida com política, é filha de Manuel Costa Júnior, deputado federal pelo PMDB nos anos 1980, e de Marília Andrade, filiada ao PT desde 1997.
Petra é também neta de Gabriel Donato de Andrade, um dos fundadores da construtora Andrade Gutierrez — uma das maiores empreiteiras do país — envolvida diretamente na Operação Lava Jato, uma das maiores investigações de corrupção da história brasileira.
Sua mãe é herdeira da construtora que foi acusada de pagar propinas em contratos da Petrobrás por meio de contas no exterior. Executivos da empresa foram condenados por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa.
No documentário, Lula é retratado como “o mocinho” enfrentando os “bandidos evangélicos”, que tentam assumir o poder pela força da fé e da manipulação. Esse enquadramento não surpreende quando se recorda que a Andrade Gutierrez repassou cerca de R$ 3,6 milhões, entre 2011 e 2014, à empresa LILS Palestras, Eventos e Publicações Ltda., ligada ao ex-presidente — segundo laudo da Polícia Federal. E, embora nem seja necessário dizer, digo mesmo assim: Lula nega todas as acusações.
Frentes de Esquerda na Igreja Católica Brasileira
Para Petra, a Bíblia cristã é utilizada para travar uma guerra santa com pretensões de domínio. O filme, portanto, esvazia o sentido espiritual da cruz cristã e a transforma em bandeira política. A narrativa poética, conduzida por uma voz intimista, sugere que estamos diante de uma revelação apocalíptica sobre os bastidores políticos que instrumentalizam a fé como ferramenta de manipulação das massas.
Nesse contexto, Petra retrata a população evangélica como a força responsável pela eleição de Jair Bolsonaro, com radicalizações crescentes, sempre num tom de alerta sobre o perigo do avanço autoritário desse grupo religioso.
A Igreja Católica, por sua vez, aparece como pano de fundo histórico — mais institucional e menos presente nas disputas políticas contemporâneas. O foco está, claramente, na ascensão dos evangélicos, que, segundo o documentário, saltaram de 5% da população nos anos 1970 para mais de 30% atualmente — uma evolução que Petra trata com inquietação.
A razão pela qual os líderes católicos foram poupados é que o projeto de ocupação da Igreja Católica pela esquerda remonta às décadas de 1960 e 1970, com a Teologia da Libertação e seu discurso de opção preferencial pelos pobres, além da proliferação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) por todo o país. Essas comunidades foram essenciais na criação do PT.
Bispos como dom Leonardo Steiner (Manaus) e dom Jaime Spengler (Porto Alegre), além da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), se posicionam como instrumentos da esquerda, assim como diversos movimentos juvenis. De acordo com levantamento do Instituto de Estudos da Religião (ISER), há cerca de 62 deputados federais identificados como católicos de esquerda, majoritariamente ligados ao PT, PDT, PSB e PSOL. Muitos desses parlamentares têm origem em movimentos e pastorais da Igreja.
Petra foi branda com a Igreja Católica devido à proximidade de parte do clero com a esquerda, mas as tensões internas são evidentes. O catolicismo no Brasil ainda abriga parcelas de fiéis e religiosos que se mantêm firmes no conservadorismo — especialmente em questões como aborto, propriedade privada e relação com movimentos sociais.
Ataque a Moro e Lula como o Equilíbrio
Neste ponto, volto à questão das referências que Petra teve dentro de casa e aprofundo a relação entre Lula e a família da cineasta. A mãe de Petra, Marília Andrade — herdeira da Andrade Gutierrez — foi militante de esquerda e próxima ao PT. Chegou a abrigar a filha de Lula, Lurian, em Paris, nos anos 1990. A própria Petra já declarou publicamente sua visão crítica e poética sobre a democracia brasileira, incluindo reflexões sobre o papel de Lula na política nacional. Ela o apresenta como um presidente em busca de conciliação, tentando equilibrar pautas progressistas com uma base conservadora em crescimento. Os escândalos de corrupção não são o foco do documentário.
Sérgio Moro é retratado como o juiz que possibilitou o avanço da extrema direita ao condenar Lula, pavimentando o caminho para Bolsonaro. Petra sugere que sua posterior nomeação como ministro da Justiça fragilizou a separação entre os poderes e levantou suspeitas sobre sua imparcialidade jurídica.
O filme mostra como a colaboração entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol foi decisiva para tirar Lula da disputa eleitoral de 2018, abrindo espaço para a eleição de Bolsonaro. A cineasta insere Moro em uma narrativa que aponta a instrumentalização do Judiciário para fins políticos, especialmente ao evidenciar sua nomeação como ministro da Justiça de Bolsonaro — gesto que reforça a suspeita de parcialidade. Petra utiliza imagens e narração para sugerir que a atuação de Moro foi parte de um projeto maior de poder, alinhado com setores conservadores e religiosos que buscavam consolidar uma nova ordem política no país.
Apokálypsis, Revelação
Na ótica de Petra, a fé está sendo usada para dividir, manipular e justificar políticas autoritárias. Sua pretensão é contribuir para o despertar de uma consciência política e social — claro, dentro de um viés que acomode Lula como líder, ignorando todo o processo de corrupção já revelado e, agora, forçosamente esquecido pela parcela da população que vota na esquerda.
Para defender alguém com um perfil tão desgastado, que prometeu tirar os brasileiros da miséria e não cumpriu, é preciso atacar os opositores. Neste caso, Petra elegeu mais duas figuras além de Moro: Malafaia e Bolsonaro.
Silas Malafaia é o personagem maléfico central desse drama nostálgico de um Brasil petista “limpinho” e voltado aos pobres. Ele é retratado ao longo de todo o documentário — seja em manifestações políticas, discursando como líder espiritual e estrategista de Jair Bolsonaro, ou em entrevistas mais íntimas. Petra sugere que Malafaia é o mentor do “Estado de Cristo”, um modelo teocrático que confronta o laicismo constitucional.
Bolsonaro é apresentado como um soldado de Malafaia, fortemente influenciado por ele enquanto esteve na presidência. Petra destaca sua postura agressiva, suas posições firmes e sustenta a narrativa de que ele agiu como negacionista durante a pandemia.
Como cereja do bolo, o documentário mostra Bolsonaro em viagem aos Estados Unidos antes da posse de Lula, além da manifestação de 8 de janeiro de 2023, quando prédios da República foram depredados em Brasília — sugerindo que seu governo culminou em uma tentativa de ruptura institucional.
O que Petra omite é que aquelas pessoas que se manifestavam em Brasília estavam desarmadas. Não foram ao Distrito Federal para destruir, mas para expressar seu sentimento de repulsa por décadas de governo petista, que resultaram no atraso do país — especialmente no que diz respeito a valores e princípios cristãos.
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