
Ana Maria Cemin – 14/07/2025
O advogado Renato Marques Rosa de Almeida, criminalista com mais de 15 anos de atuação, nos concedeu essa entrevista para clarear alguns fatos do 8 de janeiro, seja como observador crítico ou como advogado de pessoas implicadas nos inquéritos. A primeira pergunta que fiz a ele foram a respeito dos critérios utilizados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para acusar as pessoas do 8 de janeiro para que o Supremo Tribunal Federal (STF) as condenasse.
Segue a nossa conversa:
“Acompanhei de perto os desdobramentos jurídicos decorrentes dos eventos de 8 de janeiro, inicialmente em razão da defesa de um cliente de longa data. Contudo, ao me deparar com a forma como a Polícia Federal conduziu a custódia de centenas de pessoas — em um espaço improvisado que, pelas condições precárias, assemelhava-se a um verdadeiro campo de concentração — senti-me moralmente compelido a prestar orientação jurídica gratuita.
Nesse cenário, tive contato direto com aproximadamente 500 pessoas, que se reuniam espontaneamente para receber orientações jurídicas básicas sobre suas situações individuais. Foi uma experiência marcante, tanto pela gravidade das acusações que começavam a surgir quanto pela flagrante ausência de informação e de assistência técnica adequada àquelas pessoas.
Diante da dificuldade inicial em identificar, de forma precisa, quem havia efetivamente participado dos atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes, a Polícia Federal instituiu esse espaço de triagem como uma medida emergencial para realizar uma filtragem preliminar. O objetivo era distinguir aqueles que desceram à Esplanada para participar das invasões, daqueles que permaneceram apenas nos acampamentos montados nas proximidades dos quartéis.
Essa distinção, no entanto, foi baseada em questionários aplicados aos detidos pela própria Polícia Federal, no mesmo espaço improvisado que se assemelhava a um campo de concentração. Neles, os investigados eram indagados sobre sua presença na Esplanada, ou no QG e motivo de estar ali. Com base nessas respostas — muitas vezes imprecisas, mal interpretadas ou dadas sob evidente fragilidade emocional —, formulavam-se as denúncias.
O maior problema é que, a partir desse material preliminar, foram oferecidas denúncias genéricas, amparadas em indícios frágeis, como postagens em redes sociais, confecção de cartazes e até a mera permanência nos QGs. Tais elementos passaram a ser tratados, de forma quase automática, como indicativos de participação em núcleos de articulação criminosa — o que, a meu ver, representa uma generalização excessiva, que compromete a necessária individualização da conduta e a aferição do elemento subjetivo essencial à imputação penal.
Um dos grandes problemas que percebi foi que diversas pessoas que apenas estiveram no QG por curiosidade ou para registrar fotos, sem qualquer envolvimento com ações violentas, acabaram sendo surpreendidas com a prisão e posterior denunciadas. Isso evidencia que os critérios adotados pela PGR, embora fundamentados em elementos indiciários, em muitos casos foram genéricos e desproporcionais, resultando na imputação penal a pessoas cuja conduta sequer se aproximava do dolo exigido para os tipos penais imputados.
Os seus clientes que estavam apenas no QG em Brasília foram identificados por imagens, geolocalização ou outros meios?
Inicialmente, os clientes que estavam apenas no QG em Brasília não foram identificados por imagens, geolocalização ou outros meios tecnológicos. Com o avanço das investigações, em alguns casos, a Polícia Federal conseguiu extrair dados de aparelhos celulares apreendidos — desde que houvesse acesso ao conteúdo dos dispositivos.
No caso específico dos meus clientes, por orientação da defesa, optaram por não fornecer voluntariamente as senhas de seus aparelhos, o que inviabilizou o acesso direto aos dados pela autoridade policial. Diante disso, para contribuir com a elucidação dos fatos e demonstrar a localização deles no momento do ocorrido, a própria defesa apresentou informações de geolocalização, baseadas nos registros de localização dos dispositivos no dia dos fatos.
Um fato curioso é que algumas pessoas que estiveram na Esplanada conseguiram retornar para suas casas e, mesmo sem terem sido flagradas em imagens ou abordadas no local, acabaram sendo identificadas e indiciadas com base apenas em informações fornecidas por terceiros, como conhecidos ou melhor opositores do pensamento políticos do indivíduo.
Há alguma diferença de tratamento entre quem esteve no QG na noite de 8/01 e quem chegou na madrugada de 9/01?
Não houve, na prática, qualquer distinção de tratamento entre aqueles que estavam no QG na noite de 8 de janeiro e os que chegaram após os fatos da esplanada dos 3 poderes. Como mencionei na primeira resposta, houve casos de pessoas que estiveram no local apenas por curiosidade, inclusive para tirar fotos, e que, mesmo assim, foram surpreendidas com a prisão e posterior indiciamento. A abordagem foi generalizada, sem consideração efetiva do momento de chegada ou da real participação nos atos investigados.
SOBRE O PROCESSO JUDICIAL E INVESTIGAÇÃO
Em que fase processual estão os casos dos seus clientes? Já houve denúncia formal ou ainda estão em investigação?
Todos os meus clientes foram beneficiados com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), justamente por não terem descido até a Esplanada dos Ministérios e, portanto, não terem participado diretamente dos atos de depredação. Apesar de denunciados formalmente, optaram pelo acordo.
Quais provas a Polícia Federal tem apresentado para justificar a acusação de organização criminosa?
A Polícia Federal atuou, nesse caso, como longa manus das ordens emanadas do Poder Judiciário, não tendo iniciado a persecução por iniciativa própria. Na prática, agiu sob comando direto das determinações judiciais, muitas vezes em flagrante desrespeito às garantias legais e constitucionais. As acusações de organização criminosa, em diversos casos, carecem de provas concretas e individualizadas, sendo amparadas em elementos frágeis e genéricos, como presença em acampamentos, mensagens em redes sociais ou proximidade geográfica com os fatos — o que, por si só, é insuficiente para configurar o tipo penal imputado.
Um caso de meus clientes chamou atenção a própria autoridade policial pediu pelo arquivamento e mesmo assim foi dado prosseguimento.
Os clientes foram ouvidos em audiência de custódia? Houve alguma irregularidade nesse momento?
As pessoas detidas foram, sim, submetidas a audiências de custódia, porém realizadas fora do prazo legal e em momentos posteriores à prisão, o que, por si só, configura uma grave irregularidade processual. Além disso, a análise das condições da prisão e da legalidade da detenção foi feita de forma bastante superficial, sem o devido aprofundamento sobre as circunstâncias individuais de cada caso.
SOBRE O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP)
Quais são os requisitos que seus clientes precisaram cumprir para serem elegíveis ao ANPP?
No caso dos meus clientes, a principal condição para elegibilidade ao ANPP foi o fato de estarem presentes apenas no QG, sem terem participado diretamente dos atos de depredação na Esplanada dos Ministérios. A tipificação jurídica atribuída a essas condutas era mais branda, o que permitiu, legalmente, a aplicação do instituto.
O Ministério Público exige confissão formal dos crimes para propor o acordo? Como isso tem sido tratado com os clientes?
Sim. Um dos requisitos indispensáveis para a formalização do ANPP é a confissão espontânea do fato criminoso. Esse aspecto é tratado com seriedade e cautela junto aos clientes, sempre com orientação jurídica clara sobre os efeitos e limites dessa confissão, que é voltada exclusivamente para viabilizar o acordo e evitar a instauração de ação.
Quais são as condições impostas no acordo: prestação de serviços, curso sobre democracia, restrição de redes sociais, multa?
As condições variam de acordo com a situação individual de cada beneficiário. Em geral, os termos incluem prestação de serviços à comunidade, pagamento de multa, participação obrigatória em curso sobre democracia e cidadania, além de, em alguns casos, restrições temporárias ao uso de redes sociais ou à participação em manifestações públicas.
O acordo extingue completamente a punibilidade ou ainda há algum tipo de registro criminal após o cumprimento?
O ANPP tem por objetivo evitar o prosseguimento da persecução penal, ou seja, impede que se instaure uma ação criminal. Isso significa que, cumpridas integralmente as condições pactuadas, não haverá registro de condenação ou qualquer anotação que resulte em “ficha suja”. No entanto, caso a pessoa pratique novo crime no prazo de cinco anos, ela perderá o direito de ser novamente beneficiada por esse tipo de acordo.
SOBRE ESTRATÉGIAS DE DEFESA
Há possibilidade de contestar a acusação de organização criminosa com base na ausência de vínculo entre os acusados?
Na prática, não há muita margem para contestar a acusação com base apenas na ausência de vínculo entre os acusados. Por mais técnica que seja a defesa, até o momento, tenho notícia de apenas um caso de absolvição, que envolveu uma pessoa que estava passando pelo local de forma totalmente alheia aos fatos. Isso demonstra o rigor com que as acusações têm sido aplicadas.
Como a defesa tem argumentado sobre a desproporcionalidade das acusações em relação à conduta dos clientes?
A defesa tem se posicionado firmemente na ausência de conduta típica, destacando também diversas ilegalidades processuais e violações aos direitos fundamentais dos investigados. Argumentamos que há uma desproporcionalidade clara entre as acusações graves e a efetiva participação — ou a falta dela — de nossos clientes nos fatos.
Existe jurisprudência ou decisões anteriores do STF que possam ser usadas como precedente favorável?
Sim. Em nosso caso, todas as decisões e argumentos jurídicos apresentados foram embasados em precedentes e entendimentos do Supremo Tribunal Federal, que servem como base para a contestação das acusações e para garantir a observância dos direitos constitucionais dos acusados. O que se observa, na prática, é que as manifestações judiciais tendem a ser genéricas e aplicadas de forma semelhante a todos os casos. As diferenças nas decisões individuais costumam estar relacionadas principalmente ao estado de saúde do acusado, que pode pleitear alguma autorização especial ou medida específica.
SOBRE IMPACTOS E PERSPECTIVAS
Como os clientes têm lidado emocionalmente com o processo e a possibilidade de acordo?
Todos estão profundamente inconformados, pois não cometeram os crimes que lhes foram atribuídos, e mesmo assim foram presos como se tivessem praticado delitos graves. Muitos passaram por momentos de grande sofrimento durante o período de custódia na Polícia Federal, onde as condições eram tão precárias que lembravam um verdadeiro campo de concentração. Vale destacar que havia até crianças detidas no local, acompanhando seus familiares, um aspecto que praticamente não foi abordado pela mídia. Essa situação contribui para a sensação de injustiça e desamparo enfrentada por esses indivíduos.
O senhor acredita que o ANPP tem sido aplicado de forma justa e uniforme entre os acusados?
Até o momento, sim. Não tenho conhecimento de casos em que pessoas que estavam apenas no QG tenham sido excluídas do benefício do acordo, o que demonstra uma aplicação relativamente uniforme do instituto no contexto dessas investigações.
Há risco de que o descumprimento de alguma cláusula do acordo leve à retomada da ação penal?
Sim. Caso a pessoa não cumpra integralmente as condições previstas no acordo, o processo criminal é retomado do ponto inicial, com a possibilidade de oferecimento de denúncia e continuidade da persecução penal.
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