
Ana Maria Cemin – 19/08/2025
Minha entrevistada estava com 59 anos quando me procurou para contar a sua experiência como presa política no presídio Colmeia, em Brasília. A condição para publicar a sua história, ainda em fevereiro de 2023, foi não revelar a sua identidade. Falamos muitas vezes após essa primeira conversa, durante mais de dois anos, e as dores sentidas depois do registro deste texto foram muito severas.
A entrevista ocorreu no dia 19.02.2023, ela me contava que estava de tornozeleira eletrônica, que apitava seguidamente, assustando o seu filho, portador de síndrome de Down. Estava em casa, mas impedida de cumprir a sua agenda de atividades fora da cidade, pois o Estado a proibiu de ir além dos limites do município. Foi obrigada a incluir na rotina a ida, às segundas-feiras, até a Vara de Execuções Criminais do Fórum, e não foi informada de uma data para tudo isso terminar, porque, atualmente, a aplicação do Código Penal e da Constituição Federal sofre interferência do Supremo Tribunal Federal.
Ela é um dos mais de 2 mil sequestrados no acampamento em frente ao Quartel de Brasília, no dia 9.01.2023. Os advogados de defesa se sentem absolutamente impotentes.
Este texto é longo, quase 5 mil palavras, e tem em seu cerne uma vida interrompida por um governo que se diz “democrático”.
Inicio o relato com as razões que levaram a minha entrevistada até Brasília para se manifestar, e segue pela experiência vivida em detalhes no dia 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes; o sequestro dela junto com os demais acampados no QG, na manhã do dia 9 de janeiro; a vivência com cerca de duas mil pessoas no Ginásio da Polícia Federal; seu cárcere no presídio; sua briga corporal com uma carcereira; a fome; a convivência com outras doze patriotas — todas com curso superior — na cela.
É uma longa narrativa, e só lerá quem efetivamente tem interesse em conhecer a verdade que não sai na imprensa, que o governo esconde. Porém, muitos brasileiros hoje, 19/08/2025, querem apurar esses fatos sombrios ocorridos na nossa pátria, para que novas injustiças não sejam cometidas. Outros fazem de conta que nada está acontecendo.
Espero ter a competência para prender a sua atenção e mostrar o nível de brutalidade investido contra pessoas comuns: trabalhadores, pais, mães, avôs e, talvez, um parente seu. Quem sabe.
Sou jornalista, meu nome é Ana Maria Cemin, e dou voz às pessoas que desejam se manifestar.
“Sou militante política desde a adolescência e sempre estive do outro lado, defendendo as pessoas mais fracas e carentes. Isso parece coisa da esquerda, mas sou conservadora nos meus valores e princípios. Sou artista plástica de formação, com especialização em Mediação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalhei por 30 anos com dependentes químicos e menores infratores da lei, em clínicas e projetos sociais, utilizando a arte como ferramenta de inclusão social, de identificação de abusos sofridos e outras situações que estivessem acontecendo. Mediava entre a clínica, a família e o adicto e/ou menor, e meu trabalho tinha vínculo com a Vara da Infância e Juventude. Tive como missão garantir o direito do cidadão; inclusive, cheguei a me candidatar a cargo político com a bandeira de garantir os Direitos Humanos. Por isso, digo que sou uma militante política, pois entendo que é por meio da política, do zelo pelo cumprimento da lei, que posso ajudar na construção de um Brasil melhor e mais justo. Volto a dizer: parece um discurso da esquerda, mas não é, e sei que a política pode trabalhar em favor do povo — e não como ocorre hoje, em que assistimos aos políticos atuando em benefício próprio.
Nós subimos a rampa do Congresso, no dia 8 de janeiro, para olhar lá de cima. É um sonho de qualquer brasileiro subir e ficar entre as meias-luas: uma voltada para cima e outra para baixo. Nós, com o melhor do espírito patriótico, tiramos fotos com as bandeiras e oramos ajoelhados. E foi então que assistimos, atônitos, ao surgimento de helicópteros da Polícia Federal, com suas bombas de gás lacrimogêneo. Foi muito fácil perceber a Polícia Federal agindo, mas não para dispersar a multidão, porque conheço estratégia militar. Quando se quer dispersar uma multidão, joga-se uma bomba de gás lacrimogêneo no meio dela, e as pessoas correm para todos os lados. Dispersam. No dia 8, as bombas eram jogadas à esquerda, e as pessoas corriam para o lado direito e para trás. Depois disso, vendo o comportamento da massa desesperada, os policiais nos helicópteros jogavam bombas para o lado direito e para trás, obrigando as pessoas a correrem para a esquerda e para a frente. Assim, prenderam os patriotas na Praça dos Três Poderes, impedindo que fossem embora. Ficamos sufocados com o gás lacrimogêneo, naquele ambiente de conflito, que mais parecia um campo de guerra. Alguns policiais nos ajudaram a fazer a travessia do Congresso, passando por uma passarela de concreto estreita, sobre o espelho d’água, e soubemos que foram penalizados. Incrível! Eles estavam ajudando a população a se livrar daquele terror e sofreram por isso. Qual a razão de tudo isso? Para quem viveu aqueles momentos, ficou clara a intenção da Polícia Federal de manter o povo todo ali até que tudo estivesse quebrado dentro dos prédios públicos. Aos patriotas seria imputada a culpa, mas soubemos que quem estava quebrando já estava lá desde antes do almoço. Pelas mídias, circulava que o quebra-quebra começara às 15 horas, quando nós estávamos chegando, mas começou bem antes, aproximadamente às 11h45 da manhã. Existem provas, filmagens, e elas vão aparecer no devido tempo. Os próprios funcionários das casas públicas e da Guarda Nacional abriram as portas, deram senhas para que as pessoas entrassem e quebrassem. A quebradeira foi muito grande, espalharam documentos — vai muito além do que mostraram nas câmeras de segurança. Aliás, eles mostram só o que os ajuda na construção de uma narrativa para enganar o povo. Como é que alguém sairia de sua casa, viajaria até Brasília, participaria de uma manifestação democrática para quebrar um relógio do século XIV ou obras de arte? O objetivo era incriminar muita gente. As pessoas que depredaram devem ter levado embora documentos importantes, pois sabemos que há gente presa beneficiada com regalias. Devem ter juntado muitas provas, e não foram os patriotas que fizeram isso.
Gente paga fez a quebradeira nos prédios, e isso ficou comprovado em muitos vídeos. Os patriotas conseguiram evitar mortes no ambiente da Praça dos Três Poderes, desarmando infiltrados que portavam equipamentos e coquetéis ‘molotov’. Se não fossem os patriotas a interromper esses planos criminosos, certamente muitas pessoas teriam morrido, e os patriotas seriam acusados de terroristas. Os nossos identificavam esses maus elementos e os entregavam à polícia, que parecia muito passiva frente aos acontecimentos. Na minha opinião, e na de outros patriotas, Ana Priscila Azevedo é uma infiltrada paga, promotora da quebradeira. Ela foi antes para a Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro. Depois de tudo, quando o pior já tinha acontecido, voltou para o QG e teve a cara de pau de dizer que ninguém saísse dali no dia 9. Era visível a intenção dela de provocar o confronto, criando uma situação mais séria do que foi. A mesma coisa ela fez no Ginásio da Polícia Federal. O grupo da Ana Priscila era visivelmente infiltrado, por todas as circunstâncias que observamos. Lá no QG, pessoas infiltradas plantaram drogas diversas vezes, em uma delas na barraca da cozinha, onde uma mulher de 75 anos cozinhava. Essa mulher foi presa como traficante, como saiu na mídia oficial, sendo que ela nunca teve envolvimento com drogas e muito menos passagem pela polícia. Eu a conheci, ajudei no trabalho da cozinha, sei que ela foi vítima. Acredito que esteja presa por tráfico de drogas, mas não estava junto com as patriotas na Colmeia. A questão é que o Estado não fez questão alguma de averiguar nada, e uma idosa está presa por tráfico de drogas. Os infiltrados, conversando entre si, revelavam que foram pagos por Flávio Dino, Alexandre de Moraes e Lula. Riam — o Lula era o último da lista, porque diziam que quem arquitetou e articulou tudo foi o Dino, junto com o MST e os Antifas. Inclusive, duas pessoas contratadas para depredar tudo, que foram reconhecidas pelos vídeos como participantes dos atos de vandalismo do dia 8, apareceram mortas. Uma delas foi estuprada e jogada dentro de uma caçamba, e outra cruelmente torturada antes de morrer. Começaram a eliminar as pessoas envolvidas e que podem incriminar os mandantes.
Provas foram enviadas para cortes internacionais, com muitas fotos e vídeos. Eles foram feitos no dia 8 de janeiro por “patriotas” que, por mais de dois meses, avaliaram e investigaram as ações dos infiltrados e entraram nesse grupo instalado no QG de Brasília. Essas informações foram enviadas aos tribunais das cortes internacionais. Esses “patriotas corajosos” arriscaram suas vidas e observaram toda a movimentação. Lá na Praça dos Três Poderes, entraram nos prédios e registraram tudo, comprovando que os patriotas estavam chegando quando os vândalos já haviam quebrado tudo. A verdade virá à tona — já está vindo. Eles queriam criar uma situação em que os patriotas saíssem com a pecha de “terroristas”, de preferência com pessoas mortas naquele ambiente, mas isso foi evitado pelos manifestantes patriotas. E vimos que a polícia não se movimentou até que tudo estivesse quebrado.
No dia 8 fui presa e liberada na madrugada, depois de prestar depoimento a uma delegada de polícia. O fato é que, horas antes, eu tinha ido para a manifestação na Praça dos Três Poderes e não entrei em nenhum prédio. Fui lá exercer meu direito constitucional de me expressar, e o que havia sido combinado entre nós, no QG, era ocupar o espaço externo, impedindo que os trabalhadores dos prédios entrassem para trabalhar na segunda-feira, dia 9 de janeiro. Era um ato de desobediência civil previsto pela Constituição. Podíamos fazer isso como forma de protesto, mas não contávamos com a ocorrência de atos criminosos, pois em nosso movimento isso não ocorreu ao longo de mais de dois meses. Os patriotas foram para a Praça dos Três Poderes com barracas, inclusive. Uma família inteira foi para a praça com barraca, inclusive levou uma vovó na cadeira de rodas. O clima era muito tranquilo, com pessoas passando protetor solar em idosos e crianças. Não havia bandidos ali. Víamos famílias reunidas, pessoas normais. Fui presa depois dos acontecimentos, por volta das 22 horas do dia 8. Fiquei na praça para filmar tudo o que estava acontecendo, registrei tudo no meu celular, mas, como fui levada para a Delegacia de Repressão a Drogas junto com outros patriotas, meu celular ficou apreendido naquela unidade. A delegada de plantão me liberou sem sequer lavrar um boletim de ocorrência. Contei tudo o que vi na Praça dos Três Poderes e foi feito um termo circunstanciado. A delegada ordenou que eu e os demais fôssemos direto para a rodoviária, que saíssemos com urgência de Brasília, mas todos nós tínhamos pertences no QG. Decidimos, naquele horário — à 1h30 da madrugada do dia 9 — pegar um Uber até o QG e juntar o que era nosso antes de voltarmos para nossas casas. Ficamos prontos por volta das 4h30 e foi então que descobrimos que não poderíamos sair do QG: as três saídas possíveis estavam bloqueadas com policiamento ostensivo. Às 6h da manhã, vi um anel de policiais, um encostado no outro, com fuzis virados para baixo. Até esse momento, a população do QG acreditava estar sob a proteção do Exército, mas eu percebia a mudança no perfil daqueles policiais — notei a presença de oficiais pelo corte de cabelo e pelas roupas camufladas. Alguma coisa havia mudado. Não nos deixaram sair, prometendo ônibus para a rodoviária para todos. Observei que, entre 4h e 10h da manhã, eles autorizavam a entrada de mais e mais ônibus de patriotas recém-chegados de várias cidades para a manifestação. Vi chegarem ônibus de Roraima, Maranhão, Santa Catarina, Mato Grosso etc. Caíram na armadilha. Lembro que os ônibus que foram nos buscar ficaram estacionados na diagonal, parados naquele pátio imenso, e as pessoas começaram a passar mal devido à tensão que se iniciou. Socorri várias pessoas, inclusive uma professora do MT, de 38 anos, que depois veio a falecer, vítima de um mal súbito, já no Ginásio da Polícia Federal — para o desespero do marido. Um senhor que tinha bronquite asmática sentiu muita falta de ar e, após tossir e vomitar muito, teve uma crise de pânico. Consegui desobstruir sua traqueia e fiz massagem cardíaca. Sou socorrista.
Passeamos de ônibus por Brasília com um policiamento absurdo, que deve ter custado muito caro aos cofres públicos. Ordenaram que entrássemos nos ônibus e nos disseram que iríamos para a rodoviária, mas o que aconteceu foi bem diferente. Ficamos rodando sem parar por Brasília durante quase três horas, acompanhados por um policiamento absurdo, com batedores de moto e viaturas. Uma operação midiática digna de cinema — ou apenas um teatro.
Agora, contarei sobre entrar nos ônibus: lembro que a situação estava tranquila até as 9 horas da manhã do dia 9 de janeiro. Apesar de tensa e estranha, todos acreditavam na informação de que, do QG, iríamos para a rodoviária. A confusão teve início quando as pessoas começaram a desconfiar que algo de errado estava acontecendo. Os policiais militares perceberam a movimentação e, então, passaram a avançar com seus armamentos e escudos sobre os patriotas. A cada passo, aglomeravam mais as pessoas, juntando todo mundo. Os policiais foram entrando nas barracas, derrubando as coisas e pisando em tudo. Vi que as pessoas tentavam pegar seus pertences — inclusive havia quem estivesse com seu próprio veículo ali, querendo sair, mas não conseguia. Algumas pessoas compraram até gerador de energia, mas os policiais diziam que era para pegar somente o mínimo necessário, ou seja, uma roupa. Eu peguei também cobertor e alimentos. Fomos conduzidos aos ônibus. E, a cada passo à frente, iam fechando com escudo, o cordão policial empurrava as pessoas. Estavam nos coagindo a entrar nos ônibus, e mais pessoas começaram a passar mal. Vi um cadeirante cair da cadeira de rodas, um idoso que usava andador cair no chão e ficar ali deitado. Eles precisaram ser socorridos pelo próprio Exército, pelo Corpo de Bombeiros, e foram retirados dali. Nosso grupo foi um dos últimos a sair do QG e a entrar nos ônibus, por volta do meio-dia. Teve quem saiu ainda mais tarde. Nesse horário, o tratamento cortês do policiamento não existia mais, e nós fomos obrigados a entrar pela Polícia Militar — e houve quem apanhasse por se negar a entrar. Alguns legitimamente se revoltaram contra os policiais, por entenderem que não havia voz de prisão e que aquilo que estava sendo feito pelo Estado era ilegal. Esses patriotas que reagiram — e até enfrentaram os policiais — apanharam na frente dos outros patriotas e de suas famílias, ao ponto de suas mulheres suplicarem por eles. Vi familiares chorarem para que não agredissem seu pai, filho ou marido. Logo entendi que o melhor para todos nós era obedecer e seguir para onde nos levassem.
Fomos submetidos a nova revista, com cães farejadores, ao chegarmos no Ginásio da Polícia Federal. Nossas bagagens foram revistadas, colocaram cães farejadores para verificar se tínhamos drogas. Nessa revista da polícia, passamos pelos mesmos procedimentos pelos quais já havíamos passado antes de chegar ali. Chamou-me a atenção o fato de não tirarem os celulares de ninguém. Acredito até que pretendiam que os próprios patriotas produzissem provas contra si mesmos, mas isso resultou em muitas filmagens que mostraram a realidade — a nosso favor. Ana Priscila Azevedo apareceu no ginásio e, a todo momento, fazia pronunciamentos para criar tumulto entre as pessoas e a Polícia Federal. Nós estávamos com um propósito bem diferente, que era ajudar a organizar as filas para a conversa/triagem com os delegados de polícia, priorizando quem tinha comorbidades severas, idosos e cadeirantes, para que fossem liberados o quanto antes. Nós, os patriotas, queríamos ajudar a organizar o trabalho da polícia — até porque quem comprou nossa comida no primeiro dia foram eles. Quando chegou minha vez de conversar com os delegados, vi que um tomava o depoimento e o outro fazia o laudo para liberação. No meu caso, não houve consenso entre eles, apesar de eu ter 59 anos e 5 meses, várias comorbidades e um filho com necessidades especiais que precisa de mim. Recordo que o delegado “Lisboa” foi absolutamente humano — cheguei a ver seus olhos lacrimejarem, pedindo ao outro delegado que me liberasse — mas o outro disse que, sem laudo que comprovasse que meu filho de fato era deficiente, nada seria feito. Determinou que eu fosse levada para o presídio Colmeia. Quem iria imaginar que, para participar de uma manifestação civilizada em Brasília, eu deveria portar documentos que comprovassem a síndrome de Down do meu filho? Jamais!”
No Ginásio da Polícia Federal de Brasília, iniciou-se a minha desilusão. Pude ver que o Conselho Tutelar e representantes dos Direitos Humanos da OAB estavam infringindo os direitos das crianças e adolescentes que estavam presos naquele local. Conheço a legislação, pois fui coordenadora do Conselho Tutelar da minha cidade por seis anos, e nenhuma criança ou adolescente sob nossa tutela pode passar por situação igual à que esses filhos de patriotas foram submetidos, seja de constrangimento ou de desumanidade. Ali, parada, via nitidamente a violação gravíssima dos artigos 230 e 232 do ECA, que prevê pena de até dois anos de reclusão para o agente que a pratica. Crianças e adolescentes presos e submetidos à violência psicológica — o trauma, em alguns casos, exigirá posterior tratamento. O Brasil tem estatutos claros para os menores, além de estatutos para idosos e deficientes. Nada disso foi respeitado. É uma aberração da legislação.
Vi políticos aparecendo no Ginásio da PF só para chamar atenção dos meios midiáticos, buscando holofotes para si. Via que estavam ali por outros motivos, que não eram os direitos de quem estava preso. Aliás, como já disse, quem comprou comida para nós no primeiro dia — pois estávamos passando fome — foram os próprios policiais federais. Eles fizeram uma vaquinha para comprar nosso café da manhã: pão de leite com manteiga e sucos em caixinha. Aplacaram a fome de duas mil pessoas.
Lá na academia, uma idosa não aceitou sair porque queria ficar com a sua “gente”, como dizia. Uma senhorinha. Numa noite, passou mal, foi atendida, retornou ao ginásio e morreu dormindo. Ela orava toda noite enquanto esteve no QG e tirava um soninho durante o dia. Ela morreu lá, assim como um menino que se suicidou. Cortou os dois pulsos. Nós vimos o sangue descer pela arquibancada do ginásio. Eu não sei quanto tempo ele sangrou sem que alguém percebesse, pois estava no alto, isolado, encostado numa parede. Quando mexeram nele, rolou três ou quatro degraus abaixo. O resgate foi chamado, fizeram os procedimentos de socorro em um corpo inerte, colocaram-no numa maca, mas o menino não respondeu mais. Não respirava. Saiu morto de lá.
No presídio, fiquei sem as minhas medicações. Apesar de ter problemas sérios de saúde, fui proibida de tomar os medicamentos porque não tinha como comprovar à administração do Colmeia a minha necessidade, por ausência das receitas médicas. Tenho hipotireoidismo, sou hipertensa, tenho síndrome do intestino irritável (com suspeita de doença de Crohn), rinite alérgica que tranca minha respiração e síndrome do pânico. A medicação ficou toda retida.
E mais: fiquei cinco dias sem escovar os dentes e com a mesma roupa. Eu tomava banho frio e depois vestia a roupa suja. Uma saída para ficar limpa foi tomar banho com a própria roupa, lavá-la com sabonete e depois tirá-la para tomar o banho, porque não dava para lavar roupa naquela nojeira. Eu não tinha toalha para me secar e, como entregaram sacos de absorventes, eu os usava para me secar. Depois de tomar banho, enrolava-me num cobertor e esperava escorrer um pouco a roupa encharcada para depois vesti-la molhada mesmo, e me enrolava de novo no cobertor para não passar frio.
Essa foi minha vida até o quinto dia dentro do presídio, quando uma das meninas me cedeu peças de seu kit de presidiária. Então comecei a lavar, secar e trocar de roupa, podendo usar roupas das colegas de cela. A escova de dentes consegui com uma presidiária que presta serviços para reduzir seus dias naquele lugar.
Dividi cela com outras 12 patriotas. Um espaço minúsculo com uma pia e um vaso sanitário, sendo que este último ficava a um metro do beliche. Compartilhamos aquele espaço fedorento e fomos cúmplices dessa vivência. Minhas colegas de cela eram formadas em Veterinária, Fisioterapia, Assistência Social, Administração, Direito, Recursos Humanos, Pedagogia, Teologia, além de uma professora universitária, outra de ensino infantil e uma dona de casa que dá suporte na empresa do filho. Convivemos muito bem.
O espaço era pequeno e a parede era formada por um parapeito de mais ou menos um metro, e o restante perfilado de concreto, deixando brechas verticais por onde recebíamos o alimento e passávamos o lixo para as carcereiras. Só por aí já se pode imaginar a sujeira daqueles vãos onde colocavam nosso alimento — o pão, por exemplo.
Para beber, recebíamos uma caixinha de achocolatado no café da manhã e um suco no almoço, pequenos, desses que se coloca em lancheira de criança. A água para beber era da pia, salobra. O marmitex do almoço, quando abríamos, logo causava ânsia de vômito, devido ao cheiro de comida azeda. As frutas que chegavam eram mamão azedo, banana passada e goiaba verde. O que me salvou nesse tempo em que fiquei lá — ao todo, dez dias de prisão — foi o pão, as bebidas e alguma fruta que conseguia salvar. Não foram raras as vezes em que toda a comida foi descartada no lixo, porque aquilo parecia uma lavagem. É uma situação realmente degradante, e muitas patriotas seguem nessa situação. O tamanho da fruta é 7 cm, não é inteira. É uma fatia. A banana é inteira, mas nanica e passada. A gente raspava para salvar alguma coisa, pois sabíamos que precisávamos de potássio e um pouco de carboidrato para ir sobrevivendo.
Depois de muita humilhação, perdi a paciência e enfrentei uma carcereira, no corpo a corpo.
Só na terceira vez em que ela me agrediu foi que revidei, e ela nunca mais entrou no nosso corredor enquanto estive presa no Colmeia. Fomos submetidas a diversas situações humilhantes. Por exemplo, ao sairmos da cela para o pátio, éramos obrigadas a manter a cabeça baixa e não podíamos olhar nos olhos das carcereiras.
Nossas mãos deviam estar para trás, unidas, uma segurando a outra, simulando “mãos algemadas”. Como meu nome começa com uma letra do final do alfabeto, eu era sempre a última a sair. Elas faziam a contagem para garantir que ninguém havia fugido da cela — como se isso fosse possível — e nossa saída pela porta deveria ser de costas, olhando para a parede.
Elas exigiam ser chamadas de “senhoras”, enquanto nós éramos chamadas de “presas”. Faziam questão de deixar claro que a carceragem não era um hotel.
Não sou uma pessoa que aceita injustiça com facilidade, e sabia que essa carcereira havia cuspido no pão de uma menina de outra cela. Isso me deixou em estado de alerta em relação a ela.
No terceiro dia de saída da cela, minhas mãos estavam para trás, mas não tão juntas, e minha cabeça estava baixa, mas não tão baixa quanto ela queria. Além disso, eu era a última a sair de uma sala cuja porta abre para fora, e estava levemente inclinada, esperando que a porta fosse fechada para então me encostar na parede. Assim, grudadas com a cabeça na parede e olhando para o chão, ficávamos até que as 13 celas do corredor fossem abertas.
Só então éramos liberadas, enfileiradas, para ir ao pátio — sem levantar a cabeça ou soltar os braços.
Lá, ficávamos alinhadas em várias filas junto ao paredão, sobre faixas amarelas pintadas no chão, por 15 minutos sob o sol do meio-dia. Sem nos mexer, sem poder proteger a cabeça com as mãos, sob um calor escaldante. No dia em que reagi à minha agressora, ela repetiu o gesto de empurrar meu ombro, fazendo com que eu batesse a cabeça na parede — e desta vez, com força. Então empurrei sua mão, ela segurou meu pulso com força, girei sua mão e coloquei seu braço para trás. Com o giro, encostei a carcereira no perfilado de concreto que fica no lado oposto das portas das celas. Pratico defesa pessoal justamente para não permitir que abusem de mim. Na hora, ela não revidou, pois torceu o pé. Quando a soltei, ela veio para cima de mim, mas ergui as duas mãos, com as palmas voltadas para ela, e disse que, se ela me agredisse, eu apenas me defenderia. Ela desapareceu.
Após os 15 minutos sob o sol a pino, podíamos sair e ficar no pátio, conversar e tomar sol.
O local era contaminado por fezes de pombos, com muita sujeira acumulada, então pedi para que fosse lavado. E funcionou. Expliquei os riscos de doenças pulmonares decorrentes do contato com as fezes, e levaram a sério. Jogavam água, e nós — as presas — retirávamos com rodo. Uma verdadeira lambança. Hoje, busco esquecer essa situação humilhante, degradante e angustiante. Faço questão de esquecer, pois tive de engolir muita humilhação.
“Vi uma mulher cobrar da OAB uma postura correta, para que lutasse por nós lá no ginásio. Ela me chamou atenção de forma especial e foi meu anjo da guarda — ou melhor, é até hoje — embora não seja a profissional do Direito que me defende. Sabendo de tudo o que aconteceu no QG naquele dia fatídico, ela se deslocou de sua casa, em Brasília, para prestar solidariedade a nós, presos políticos, retidos no Ginásio da Polícia Federal. Vi-a cobrar com severidade uma ação imediata da OAB. Dizia a uma integrante da entidade que não adiantava ir com suas roupinhas bonitinhas se não fosse atuar contra a violação dos direitos de todas aquelas pessoas, presas de forma arbitrária. Ela soltou o verbo e queria saber onde estava o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, que até então não havia marcado presença no local, e enumerava as irregularidades que estavam acontecendo para quem quisesse ouvir. O que aquela mulher dizia era exatamente tudo o que estava errado na ação do Estado contra nós, e percebi o quanto ela era sensata. Aproximei-me dela e, desde então, tenho sido apoiada em muitas situações: ajudou-me a contratar um advogado criminal, foi comigo à audiência de custódia e no dia em que me colocaram a tornozeleira eletrônica. E, ainda, na véspera da volta para minha casa, ela me acolheu em sua residência, alimentou-me, deu-me colo. No dia do meu embarque, levou-me à rodoviária, pagou o Uber, acompanhou-me até eu sair de lá e, até hoje, tem me acompanhado nesses dias após os acontecimentos de 8 de janeiro.”
A tensão era imensa no ginásio, porque todo mundo que saía para conversar com os delegados tinha a sensação de ir direto para o presídio. Observávamos até o tipo de ônibus para tentar prever nosso destino. Quando você é sequestrado como nós fomos, com a promessa de ser levado à rodoviária — e não fomos — e acontece tudo o que aconteceu, com revistas com cães farejadores, policiamento ostensivo, prisão no ginásio e tudo mais, é difícil não temer o que vem depois. Não passava pela nossa cabeça ir para presídios quando saímos de casa, viajamos para nos manifestar pacificamente na capital do nosso país. Jamais imaginaríamos o que viria depois, por ser impossível cogitar isso quando se vive no Brasil democrático, que tem uma Constituição Federal que permite a livre expressão.
Observei que os primeiros ônibus que nos levaram ao Ginásio da Polícia Federal eram normais, de linha, para enganar o povo. Porém, os ônibus que nos tiraram do ginásio eram do presídio: tinham até grades, sem visibilidade, tudo vedado. Temos vídeos de pessoas que passaram mal dentro dos ônibus. Olhávamos para o pátio e víamos chegar uma quantidade grande de ônibus da penitenciária. Orávamos muito, porque aquilo tudo era assustador. Em alguns daqueles ônibus, ouvíamos homens gritando para não entrarmos, pois seríamos levados ao presídio da Papuda. Tudo parecia muito surreal. Estávamos encurralados.
A turma da OAB era visivelmente petista, espalhava terror entre nós e apresentava a possibilidade de nos acompanhar à audiência de custódia mediante pagamento, por PIX, de valores entre R$ 1.500,00 e R$ 5.000,00. Teve gente que pagou na hora; era um desespero só. O papel desses advogados se resumia a atravessar a rua conosco e ir até a Polícia Federal para coletar nossas informações. Minha amiga, que foi lutar pelos direitos dos patriotas, enfrentou o sistema e esfregou na cara deles o quanto eram safados e sem vergonha, que estavam ali só para tirar dinheiro do povo, aumentando o clima de terror, porque sabiam que ninguém sairia livre dali.
Depois que saí do presídio Colmeia, iniciamos terapia familiar, mesmo que eu já fizesse isso regularmente por atuar como terapeuta. Depois do que aconteceu em Brasília, tivemos que ir todos para tratamento psicológico. Meu filho, quando ouve a tornozeleira eletrônica apitar, vem correndo desesperado, muito nervoso, querendo tirar a tornozeleira da minha perna ou então vem com o carregador para carregá-la. Ele chora e não me deixa sair de casa para ir ao supermercado, porque pensa que não vou voltar. Ele tem 26 anos, a síndrome de Down o faz dependente e, recentemente, passou a apresentar síndrome do pânico. Sempre foi calmo, era meu contraponto — por eu ser agitada — mas hoje está muito ansioso. Basta me ver trocando de roupa para sair que ele se prepara para me acompanhar. E eu tenho que ir toda segunda-feira à Vara de Execuções Penais. Ele me disse que, se eu voltar para a cadeia, ele vai junto.
Aqui fora, acompanho como a imprensa está noticiando a história vivida por nós, e me sinto envergonhada e indignada de ser brasileira. Nunca tive esse sentimento na vida. Sempre briguei pelo meu país, tanto que sou militante política. Sempre acreditei que a política podia ser feita de maneira honesta, por ter levado uma vida inteira ao lado dos mais fracos, daqueles que precisavam de apoio para garantir seus direitos — do lado pobre. Meu discurso não é de esquerda, é de quem acredita na política voltada aos cidadãos, e que o político é nosso funcionário, pago com os meus e os seus impostos. Por isso, é justo e correto que trabalhem em favor do povo, para beneficiar o povo.
Vi a vida inteira problemas como crianças sem creche e adolescentes sem projetos sociais. Eles ficam nas ruas à mercê de traficantes, para serem aliciados e atuarem como “aviãozinho”. Depois do estrago, você tem que colocá-los em tratamento, com medidas socioeducativas. Sempre lutei para que as pessoas tivessem qualidade de vida, dignidade. Agora vejo que, neste país, ninguém vai conseguir ter dignidade, porque o dinheiro compra todo mundo — inclusive a imprensa. Compra políticos, compra generais. Cala todo mundo, e eles constroem uma narrativa e contam a história do jeito que querem.
Tenho vergonha de ser brasileira neste momento. A imprensa só tem um lado hoje. O Brasil só tem um lado: o do comunismo. Querem vender a ideia de que os patriotas fizeram aquele quebra-quebra tenebroso. Sou artista plástica, desenho e pinto desde a infância. Sou restauradora de arte. Quem, em sã consciência, pode me acusar de ter destruído um relógio que é uma obra de arte? É um absurdo isso. E com uma imprensa assim, sabendo que temos 80% da população brasileira com baixa escolaridade, baixo nível cultural, ligados na Globo, fica muito fácil manipular as pessoas.
Preciso voltar à vida normal, e contratei uma advogada criminalista após a definição da minha prisão preventiva para cuidar disso. Até aquele momento, tive apoio moral da amiga que conheci em Brasília, como já contei antes — inclusive foi ela quem comprou meu kit de presa, entregue para mim somente no dia em que saí. Não sabemos por que não o recebi enquanto estava na cela, que tipo de burocracia acontece no Colmeia, e me virei com o que consegui emprestado das meninas.
Neste momento, estou aguardando a decisão da Justiça quanto à retirada da tornozeleira eletrônica e à liberação para que eu possa voltar a trabalhar com minhas consultorias em cidades vizinhas. Minha advogada entrou com requerimento pedindo a suspensão das medidas cautelares da minha liberdade provisória. Estou com dificuldades financeiras — inclusive preciso entregar o apartamento onde moro, pois vou para a casa do meu pai com meu filho, até que tudo melhore para mim. Não tenho como manter o aluguel. Meu ganho atual dá para comprar os medicamentos, mas deixei de pagar plano de saúde e passei a viver de forma sub-humana. Eu vivia uma vida simples, mas estou impedida de exercer minha profissão e dependo da ajuda dos outros. Agora, não estou conseguindo viver com dignidade nem manter a mim e ao meu filho sem ajuda. Nossas vidas foram ceifadas.”
Nota da redatora: Este texto foi escrito em fevereiro de 2023 e a vida dessa senhora foi um inferno até que aceitou fazer o Acordo de Não Persecução Penal, assumindo que participou de um golpe de Estado – Caxias do Sul, 19 de agosto de 2025.
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