
Ana Maria Cemin – 16/08/2025
Recebi um texto profundamente comovente de um cidadão que, por razões de segurança, prefere manter o anonimato. Apesar de sua discrição, tem se dedicado silenciosamente a apoiar os presos políticos do dia 8 de janeiro.
Em sua mensagem, ele me escreveu:
“Boa tarde, Ana, muito prazer conhecê-la. Li as 20 cartas que recebi de presos do dia 8. Logo em seguida, vi a reportagem do ministro Alexandre de Moraes falando em erros e acertos. Fiquei indignado. Assim, surgiu essa carta. Não tenho coragem de publicá-la, pois seria perseguido pelo ministro. Confio em você.”
O texto que ele compartilhou é mais do que um desabafo — é um retrato da dor, da indignação e da esperança de quem tem lido, uma a uma, as vozes silenciadas por trás das grades. Inspirado pelas cartas que recebeu, ele reuniu trechos e sentimentos que merecem ser lidos. A seguir, compartilho esse material com o respeito e a sensibilidade que ele exige.
ERROS E ACERTOS SÃO HUMANOS! NÃO PARA O SENHOR MORAES!
“Hoje, o senhor disse que “são seres humanos que cometem erros e acertos”.
E, no entanto, aqui estou, depois de meses socorrendo familiares e vítimas do 8 de janeiro, trazendo-lhe estas vozes que o senhor não quis ouvir.
Vozes que o senhor calou no medo, na força impiedosa e cruel de sua imponente toga preta. Vidas que o senhor passou por cima, como uma borracha que apaga um traço no papel — mas eram pessoas, esses sim, seres humanos. Na verdade, eram mundos inteiros.
Diz o senhor que “todos erram”.
Mas, é preciso delimitar o que houve, não foi um erro: foi um ato arquitetado, cruel, foi um deserto, cavado a frio, com sangue, desespero, onde a dignidade foi deixada para morrer.
Erro? O senhor não sabe o que é ter o corpo aprisionado numa cela úmida, escura, sem vestígios de humanidade, nem o que é sentir a pele queimar sob o metal frio de uma tornozeleira aprisionando a alma que restou, por misericórdia, como quem carrega no tornozelo a própria sentença de invisibilidade, de uma morte em vida.
Erros e acertos? Você não sabe o que é ver um casamento de quinze anos desmoronar pela fome, pela ausência do básico para sobreviver, porque os recursos do dia a dia desapareceram nas contas e bens bloqueados pela sua sede de vingança.
Nem perder a formatura de um filho ou ir a um velório para despedida de um familiar que faleceu e não se pôde consolar entes queridos e ser consolado.
Não compreende o que é passar os Natais abandonado na saudade de uma singela e quentinha ceia familiar.
Não sabe, porque esqueceu o que era humano e incorporou as trevas a ponto de se arrogar de felicidade em fazer a nossa própria luz murchar até não ter mais cor.
Não sabe o que é ser mãe e ouvir do filho:
“Preferia que a senhora estivesse no céu, porque lá não existem pessoas más”.
Ou ver uma filha cobrir o rosto com roupas de inverno no calor de quarenta graus, para esconder feridas que não vieram da pele, mas da alma massacrada e dilacerada de sentimentos de desespero, saudade, angústia, depressão.
Não compreende o que é sair de casa na noite escura, fria, com pressa, apavorada, porque o ódio disseminado por suas palavras malditas, carregadas nas tintas de sua caneta, haviam semeados na imprensa, na internet uma perseguição sem fim, feitas por estranhos, que “endemoniados” por suas ações passaram a postar nossos nomes, endereços, profissões, a nos chamar de terroristas, golpistas, traidores da pátria — logo nós que estávamos presos por vivenciar a experiência de ser o hino que diz “verás que um filho teu não foge à luta”.
Você não entende o que é deixar filhos, maridos, esposas, familiares, amigos, igreja, trabalho para trás, expostos às possibilidades maquiavélicas de um ser sem controle que negociou sua alma às benesses do poder.
Não sabe o que é vender panchos na rua de um país estrangeiro, em frio de menos três graus, dividir um barraco de madeira com várias pessoas, sem água quente, sem banheiro, sobrevivendo a ratos, baratas e formigas, enquanto o coração fica do outro lado da fronteira, preso aos netos e filhos que choram, se espedaçam na saudade e na falta de sustento.
Não sabe o que é fugir atormentado por perseguição diabólica sem fronteiras a ponto de atravessar dez países, sem dinheiro, correndo riscos de estupro, assaltos, morte, passando fome, sede, dormindo em rodoviária e rodovias, no alento, para tentar entrar legalmente em outro lugar que os proteja da escuridão que habita na essência de uma “majestade” impiedosa. Pior, ainda voltar derrotada, com a roupa imunda, cheirando a poeira de estrada, com lágrimas secas ao redor dos olhos, como lama, lambuzadas no que um dia se chamou rosto, sinônimo de face.
Não sabe o que é acordar de madrugada, enclausurada em um presídio, a gritar confusa, ora pela morte, ora pelo socorro do algoz, com uma dor dilacerante no peito, achando que estava a infartar, para logo descobrir que era só a alma que já não aguentava a tortura de ser uma inocente.
Não entende o que era ter que escolher entre voltar para uma cela mofada, suja, fedorenta, amontoada de “lixos humanos” descartados pela desumanização de suas condenações ou “aceitar” um acordo de culpa que não era liberdade, mas vergonha, arbítrio, era só outro nome para prisão.
Erro? Como? Se você não sabe o que é viver com a marca invisível de “presa do dia 8”, à semelhança dos judeus no holocausto, como se fossem numerações forjadas a fogo na pele.
Não compreende, porque nunca se identificou com os humanizados. Não sabe o que é sentir as portas se fecharem, os olhares se desviarem, as bocas gritarem, reproduzirem sentenças de ilegalidades. Não sabe o que são as oportunidades irem embora carregando o que ainda restou do ser que deixou de se ver no espelho, no cárcere, na vida cotidiana, à imagem de um humano, o que dizer à semelhança de Deus!
O senhor falou de humanidade.
Mas o que você sabe disso? Pois, humanidade não é apenas o gesto de um instante, é a construção de um entrelaçado de pontes. Situação que desconhece uma vez que o senhor ergueu muros de desconfiança, inverdades e opressão.
Portanto, não é apenas dizer “todos erram”, é reconhecer que muitos aqui não erraram, mas pagaram como se fossem culpados de crimes inomináveis.
O senhor disse “acertos e erros”. Mas onde está o acerto em tomar o lar de alguém, em fazer uma mãe viver de remédios, calmantes, pensando em tirar a vida, em transformar um avô presente num forasteiro esquecido, mas perseguido no próprio país, em colocar grades na vida de quem não quebrou sequer um galho de árvore?
O perdão, senhor ministro, não é um ato automático. Ele nasce quando o ofensor se reconhece no ofendido. Mas o senhor não se reconheceu em nenhum de nós. E, nesse não se reconhecer, foi o senhor que deixou de se parecer humano para ser alguma coisa. Não posso dizer que você se desumanizou, porque talvez nunca tenha sido.
Pelos relatos, você foi quem desumanizou inocentes, idosos, doentes, maridos, esposas, filhos, netos, famílias, não apenas por lhes tirar a liberdade, mas fazendo-os acreditar que já não eram dignos dela. E isso o senhor fez com maestria.
Talvez um dia o senhor leia ou ouça estas vozes e perceba: o que o senhor chama de “erro” é, para nós, um inverno que ainda não acabou. E que para perdoar, antes é preciso que o senhor nos devolva o que nos foi arrancado: a vida, o nome limpo, o abraço quentinho dos nossos amores e o direito de ser, simplesmente, gente, que apesar de você, ama o Brasil.”
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