
Ana Maria Cemin – 12/08/2025
Ela não aparece nas manchetes. Não ocupa cargos públicos, nem fala em nome de partidos, porém Suzi de Moraes Barros, psicóloga de 79 anos, tem feito o que muitos evitam: escutar. Desde o início de 2024, ela atende voluntariamente presos políticos do 8 de Janeiro e seus familiares — inclusive crianças que perderam o convívio com pai ou mãe, ou com os dois.
Por chamadas de vídeo, Suzi oferece mais do que palavras: acolhe com humanidade. E quando não está escutando, escreve. Seus textos são testemunhos comoventes da dor, da resistência e da invisibilidade que cercam essas vidas. Entre grades e silêncios, ela abraça os esquecidos.
Suzi reside em Jundiaí, SP, e tem uma trajetória marcada por décadas de voluntariado. Atuou em diversas frentes sociais: com menores carentes em Campo Grande (MS), com dependentes químicos em núcleos assistenciais de São Paulo, e até mesmo em cadeias públicas. Seu compromisso com o cuidado humano começou ainda na faculdade, após criar os seus filhos, e nunca mais cessou.
Desde o início de 2024, Suzi se voluntariou para atender presos e familiares, atendendo um convite público da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (ASFAV). Para ela, o trabalho não é terapêutico no sentido clínico — é acompanhamento, é estar junto, é entender o silêncio.
Suzi já acompanhou 11 pessoas, incluindo uma família inteira, foragidos, adolescentes e crianças. Hoje, mantém contato regular com três pacientes e conversas esporádicas com outros. Seu olhar sobre os eventos de 8 de Janeiro é crítico: ela os vê como uma armadilha orquestrada, que levou pessoas bem-intencionadas a uma situação devastadora.

O que mais a comove? As crianças. Aquelas que perderam o convívio com os pais, que não têm estrutura emocional para lidar com o trauma, e que precisam de alguém que compreenda seus silêncios e seus gestos — mesmo à distância, por uma tela de celular.
Compartilho com você este texto, escrito por Suzi, no qual ela dá voz a uma mulher de 56 anos, presa em Brasília. Essa presa política esteve próxima ao MST no período de 2002 a 2014, percebeu que o perfil não estava de acordo com o seu pensamento e, há muito, não participa de nenhum movimento. A história é de dor, resistência e identidade. Hoje vive com tornozeleira eletrônica em um assentamento, sem se dobrar às perseguições que denuncia.
NÃO SOU TORNOZELADA. ESTOU TORNOZELADA.
“Sim, essa é a minha realidade — e a de tantas outras pessoas como eu. Milhares, com certeza.
Você não sabe meu nome. E confesso: talvez nunca saberá. Sou uma brasileira que ama seu país, sua gente. Sou esposa, mãe, avó. Sou aquela mulher de mãos calejadas pela lida na terra. Aquela mulher miscigenada. Aquela que, na juventude, descobriu — a duras penas — que o chamado para a luta por igualdade de direitos era, muitas vezes, apenas uma forma de colocar um cabresto em você e torná-la massa de manobra para o desfrute do MST.
Nesse embate entre sonho e realidade, tive a certeza: sou verde e amarela por dentro e por fora. E por amor ao Brasil, aos filhos e netos, eu estava lá. Sim, estava lá no QG, no 8 de Janeiro, pacificamente, desde a mobilização. Cozinhando, orando, trocando experiências de vida com quem tinha o mesmo ideal: justiça, liberdade, o direito de se manifestar pacificamente.
Eu estava lá por mim, pelos meus — e por você também. Você não me conhece, assim como não conhece os outros de nós. Presos e tornozelados.
Já parou para pensar quantas pessoas foram direta e indiretamente afetadas por essa situação? Faça um exercício de imaginação. Se fosse com você, quantos seriam? Pais, filhos, netos, irmãos, esposo (a), fora primos e sobrinhos… e por aí vai.
Você já parou para calcular como é viver com o pouco, e mesmo assim o que você tem foi bloqueado? Sem poder trabalhar. Sem poder dormir direito, preocupado — ou preocupada — se a bateria da tornozeleira vai descarregar; se a energia acabar de repente e você não conseguir carregar; se o sinal avisando que a bateria está acabando não funcionar, e você for penalizada por isso.
O tempo que você leva paralisada, sem se mexer, enquanto ela carrega. Ser rejeitada, às vezes por medo, pelos seus pares, pela sua comunidade — até mesmo por alguns parentes. Não poder mais ir aos lugares que você aprecia. Não poder fazer as atividades que você gosta.
Pois é. Esta sou eu.
Quase três anos. O tempo passou. A vida parou — e está passando. A angústia, a ansiedade, a depressão vão e vêm. E você continua sem saber o meu nome. Nem o de todos os outros.
O que posso dizer a você é:
Eu não sou tornozelada. Eu estou tornozelada. E ainda estou aqui.”
Neste segundo texto, Suzi escreve sobre dois irmãos — um menino de 17 anos e uma menina de 14 — que perderam o lar após a prisão do pai em 8 de Janeiro de 2023. Vivendo por dois anos sem estrutura familiar, foram recentemente acolhidos por um tio. O texto é um desabafo comovente da psicóloga, uma denúncia poética sobre o abandono e a indiferença.
QUEM SE IMPORTA?
“E pensar que eu sou do século passado — mais precisamente de 1946.
Estamos perdendo a liberdade. Ou já perdemos.
Estamos perdendo a compaixão, a empatia, o sentir com o outro.
Ah, mas isso não importa.
Não importa que pessoas estejam presas sem o devido processo legal.
Não importa que estejam foragidas, longe dos seus e da sua terra, por temerem uma justiça injusta.
Não importa que alguém tenha morrido sob a tutela do Estado — ou, quem sabe, como consequência dele.
Não importa que crianças chorem no berço pela ausência do colo da mãe ou do abraço do pai.
Não importa que jovenzinhos estejam sozinhos, à própria sorte, por sua conta e risco — sem pai, sem mãe, sem os dois.
Quem se importa que uma nação chore por seus filhos injustiçados?
Quiçá choremos por todos nós.
Quem se importa que meia dúzia subjugue um povo, estupre a Constituição — sem terem recebido um voto sequer do povo que é soberano?
Quem se importa que aqueles em quem depositamos nossa confiança, nossas esperanças, sigam indiferentes frente a tudo isso?
O que importa que uma menina ou um menino deitem e acordem assustados todos os dias, sem perspectiva de futuro?
Quem se importa que eles tenham que lidar com ausências, carências, o sentimento de abandono, de menos-valia, necessidades físicas, emocionais e financeiras?
Quem se importa que tenham que buscar trabalho para sobreviver — sem respaldo paterno, sem proteção legal?
Quem se importa que não possam visitar o pai ou a mãe por não haver um adulto que se prontifique a levá-los?
Quem se importa se talvez o advogado tenha achado melhor manter essa situação para poder pleitear, reforçar a necessidade do pai ou da mãe ao lado deles?
E lá se vão mais de dois anos.
Quem se importa?
Nada disso bateu à minha porta.
Não é comigo.
Quem se importa?
Não nos esqueçamos que hoje é com eles.
Certamente, amanhã será conosco — ou com nossos filhos, nossos netos.
Mas hoje… quem se importa?
Eu me importo.
Amo vocês, meus meninos.”
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