
Ana Maria Cemin 22/07/2025
No centro de um dos episódios mais controversos pós-8 de janeiro, o suboficial da Marinha Marco Antônio Braga Caldas tornou-se o primeiro militar expulso das Forças Armadas por participação nos atos que marcaram aquela data. Condenado pelo STF a 14 anos de prisão, ele cumpre pena em unidade militar mesmo após laudos periciais indicarem que não participou diretamente dos crimes pelos quais foi responsabilizado.
Caldas, que serviu à Marinha por mais de três décadas, tem enfrentado não apenas os efeitos de sua condenação, mas também a exclusão da reserva remunerada — decisão tomada mesmo após o Conselho de Disciplina, formado por oficiais superiores, ter recomendado sua permanência. A exclusão, ignorando parecer técnico e sem apresentar motivação disciplinar autônoma, tem sido alvo de crítica e questionamento jurídico por possíveis violações constitucionais.

A defesa de Marco é conduzida pelo advogado Douglas Eduardo da Conceição Dulce, que se tornou um dos principais porta-vozes da luta pela revisão do processo e pela reintegração do suboficial à Marinha. Em entrevista exclusiva, ele compartilha os pontos que considera decisivos para a reavaliação do caso, discute os possíveis sinais de perseguição política, o impacto da sentença como precedente e as medidas jurídicas já adotadas para reverter o afastamento.
SOBRE O PROCESSO PENAL E A CONDENAÇÃO
A defesa considera que houve violação ao devido processo legal na condenação de Marco? Quais pontos específicos sustentam essa alegação?
Sim! Embora saibamos que o processo já tenha transitado em julgado, a resposta é sim. A violação ao devido processo legal consubstancia-se no fato de terem sido ignoradas as provas periciais constantes dos autos, bem como pela manifesta inobservância da devida individualização da conduta de cada pessoa presente naquele dia. Ônus difícil? Sim, mas é ônus! E, por fim, diante das inequívocas dubiedades dos fatos.
Na realidade, o que caberia era a absolvição do Suboficial Caldas, ao menos em observância ao princípio do in dubio pro reo — termo jurídico que significa que, em caso de dúvida, o réu deve ser absolvido — em virtude da impossibilidade de se atribuir, de forma inequívoca, as condutas criminosas a ele imputadas.
Como o senhor avalia o fato de que cinco ministros divergiram da decisão do relator, incluindo um voto pela absolvição? Isso abre margem para revisão judicial?
Não necessariamente, pois não há irregularidade na divergência, devendo a decisão da maioria prevalecer e ser respeitada. No entanto, é impossível negar que há divergência entre os ministros — inclusive com voto pela absolvição — é juridicamente relevante, o que pode abrir margem para uma revisão judicial, diante da ausência de consenso na corte superior, com votos contrários robustos e bem fundamentados.
Todavia, tal divergência não possui o poder de invalidar o acórdão, formado pela maioria dos votos dos ministros. Porém, legitima o inconformismo jurídico, podendo, por exemplo, dar ensejo a insurgências relacionadas a direitos humanos, em caso de identificação de violação de garantias fundamentais.
A condenação se baseou em provas materiais ou apenas na presença de Marco no local dos atos? Há elementos que comprovem sua não participação nos crimes atribuídos?
Apenas na presença, sem sombra de dúvida. Sim, há elementos, principalmente a perícia realizada no celular que o Suboficial Caldas portava na ocasião, que comprovam que, no momento da depredação e invasão dos prédios públicos, ele estava no centro da Praça dos Três Poderes. Portanto, impossível lhe atribuir tais crimes. Fato este confirmado por uma segunda perícia, realizada por outro perito independente, ambas presentes nos autos do processo criminal. No entanto, mesmo com essas provas periciais nos autos, o Suboficial Caldas foi condenado a 14 anos de reclusão.
SOBRE A EXCLUSÃO DA MARINHA
O Conselho de Disciplina recomendou a permanência de Marco na reserva, mas a decisão final foi pela exclusão. Como a defesa interpreta essa contradição?
Inicialmente, no que tange aos membros do Conselho de Disciplina, extrai-se nitidamente profissionalismo, imparcialidade e fiel observância da lei. Já, acerca da decisão do Comandante do 5º Distrito Naval — pessoa que determinou a instauração do Conselho de Disciplina — e do Diretor do Pessoal da Marinha, não se pode afirmar o mesmo, pois a decisão de exclusão não pode se basear exclusivamente na condenação do Suboficial Caldas pelo STF.
Precisa, necessariamente, ser inequivocamente motivada e fundamentada de forma específica, o que manifestamente não ocorreu. Portanto, trata-se de atos ilegais, passíveis de revisão e/ou anulação judicial.
Não poderiam dois Almirantes do mais alto gabarito — o Comandante do 5º Distrito Naval, Vice-Almirante Augusto José da Silva Fonseca Junior, e o Diretor do Pessoal da Marinha, Vice-Almirante Marcelo Menezes Cardoso — simplesmente declarar discordância do irrepreensível e minucioso parecer final do Conselho de Disciplina e, então, expulsar o Suboficial Caldas por meio de banais “considerandos”, baseando-se exclusivamente na ação penal que tramitou no STF.
Absolutamente não! Expulsar é uma discricionariedade das autoridades militares, mas a exclusão ignorou parecer técnico e não apresentou justificativa disciplinar autônoma.
Isso pode ser considerado abuso de autoridade administrativa?
Sim, porque o parecer foi ignorado. Estamos falando de três Oficiais Superiores nomeados pelo Comandante do 5º Distrito Naval. Se não fossem capazes de conduzir perfeitamente o Conselho de Disciplina, certamente não seriam nomeados.
Por que nomear o Capitão de Corveta Luiz Carlos Zamith Moreira, o Capitão de Corveta Rodrigo Pulcinelli Benedetti e o Capitão de Corveta Rodrigo Di Blazio Santos? Pelo fato de serem os melhores. Não há outra justificativa.
Sabemos que o Vice-Almirante Comandante do 5º Distrito Naval não estava vinculado à decisão dos três oficiais superiores que conduziram o conselho, mas simplesmente dizer que discorda e expulsar por meio de diversos e meros “considerandos” — nos quais cita apenas o resultado do processo criminal que tramitou no STF, sem trazer a imprescindível motivação exigida pela Constituição Federal — legitima a ilegalidade da decisão.
Portanto, a resposta é sim. Não necessariamente abuso de autoridade, mas violação à Constituição Federal e, consequentemente, nulidade do ato administrativo, proferido sem qualquer motivação e fundamento.
Quais medidas jurídicas estão sendo tomadas para tentar reverter o ato de exclusão?
Já foi tomada a medida administrativa cabível para o momento, e serão adotadas todas as demais necessárias, inclusive passando pelo Comandante da Marinha e pelo Presidente da República, conforme o Decreto 71.500/72, DGOM 3ª Revisão, Estatuto dos Militares, CPPM, e, acima de tudo, em observância à Constituição Federal.
Todas as medidas judiciais cabíveis serão tomadas com o objetivo de alcançar justiça, por meio da anulação do lamentável e ilegal ato administrativo de exclusão do Suboficial Caldas.
PERSEGUIÇÃO POLÍTICA E POSICIONAMENTOS IDEOLÓGICOS
A defesa observa sinais de perseguição política ou tentativa de silenciamento de posicionamentos ideológicos?
É lamentável, mas acredito ser impossível fechar os olhos a essa possibilidade — embora não devesse ser assim. No entanto, minhas palavras sobre essa questão não são absolutas, razão pela qual me entreguei à defesa: quero realmente saber se existe perseguição política e/ou tentativa de silenciamento de posicionamentos ideológicos. Apenas o resultado desta demanda trará uma resposta inequívoca.
Importante deixar claro que, caso realmente exista tal perseguição, ela não representa uma intenção institucional da Marinha como um todo, considerando a brilhante e imparcial atuação dos ilustres Oficiais Superiores que conduziram o Conselho de Disciplina instaurado pelo Comando do 5º Distrito Naval contra o Suboficial Caldas.
Há iniciativas para garantir que ele não seja misturado com criminosos comuns, como ocorreu em parte de sua detenção?
Caso seja mantida a expulsão do Suboficial Caldas das fileiras da Marinha do Brasil, ele perderá o status de militar, passando a ser considerado civil como qualquer outro cidadão. Com isso, poderá ser recolhido a presídio comum, sendo garantida sua integridade física e psicológica, conforme a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84). Essa lei prevê expressamente a separação entre presos provisórios e condenados definitivos.
Por sua vez, a Constituição Federal (art. 5º, XLIX) assegura o respeito à integridade física e moral do preso. Assim, ainda que se trate de um condenado com trânsito em julgado, por ser ex-militar, há risco concreto de retaliação e violência no interior das unidades prisionais, o que justificaria sua permanência em cela separada dos demais.
Além disso, como ex-militar da Marinha entre 1996 e 2005, e tendo atuado na Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de Goiás com presos temporários, provisórios e condenados, testemunhei essa possibilidade: mesmo condenados, ex-militares são frequentemente separados dentro do estabelecimento prisional.
Com o Suboficial Caldas, caso chegue a esse ponto — o que não se espera — a defesa buscará sua alocação em local separado dos demais, com base no art. 5º, XLIX da Constituição, que garante o respeito à integridade física e moral, bem como no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), considerando o risco concreto ao qual estaria submetido, conforme entendimento dos tribunais superiores.
SOBRE O CASO COMO PRECEDENTE
Marco foi o primeiro militar expulso por participação nos atos de 8 de janeiro. Isso pode abrir precedente para outros casos semelhantes?
Sim. É inegável que sua expulsão abre precedente para a condenação de outras pessoas na condição de réus pelo mesmo fato gerador.
Contudo, a defesa tem atuado no sentido de construir resultados que sirvam de precedentes favoráveis a eventuais réus cujas circunstâncias se confundem com as do Suboficial Caldas. Difícil? Sim. Impossível? Absolutamente não.
Importante ressaltar que o inevitável precedente positivo não será mérito da defesa, mas sim da Justiça brasileira que, como o próprio nome indica, entregará justiça à sociedade — condenando apenas os verdadeiramente culpados e absolvendo/revogando a sentença condenatória daqueles que apenas estavam presentes na Praça dos Três Poderes naquele fatídico dia, sem, no entanto:
- Deteriorar ou depredar patrimônio tombado;
- Promover dano qualificado;
- Tentar realizar golpe de Estado;
- Abolir violentamente o Estado Democrático de Direito;
- Associar-se criminosamente — e muito menos, estando armados.
A defesa acredita que há tentativa de criar um exemplo punitivo com Marco? Como isso afeta o direito à ampla defesa?
Chego a duas conclusões. Por um lado, sim. Por outro, não.
Sim, pois, ainda que de forma tácita, parece haver uma intenção de inibir a presença de militares da reserva/inativos em atos políticos — e, sobretudo, de desestimular que opinem ou exponham seus pensamentos e conceitos ideológicos, filosóficos ou ligados ao interesse público. Isso, mesmo sendo garantido pela Lei 7.524/86.
Cabe, então, um questionamento: após estas condenações oriundas do 8 de janeiro, qual militar inativo terá coragem de se valer do art. 1º da Lei 7.524/86? O que ele prevê: “Respeitados os limites estabelecidos na lei civil, é facultado ao militar inativo, independentemente das disposições constantes dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria pertinente ao interesse público.”
Eu mesmo respondo: absolutamente nenhum.
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