PANO, TERÇO E BARALHO: RELÍQUIAS DO PRESÍDIO

Por Ana Maria Cemin- Jornalista

O que faz a gente se apegar a pequenos objetos como se fossem relíquias? Quem sabe levar algo do Colmeia e Papuda para casa possa representar um vínculo de afeto criado entre os patriotas nos dias infindáveis dentro de celas úmidas, lotadas, desconfortáveis e sem a mínima higiene.

A passagem das pessoas comuns e trabalhadoras pelos presídios Papuda e Colmeia deixam marcas neles, em especial por despertar a revolta naqueles que nada fizeram para serem presos em 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes ou no dia seguinte no QG em frente ao Exército. Deixam feridas abertas também na história do Brasil, irreparáveis. Alguém vandalizou os prédios da República, mas não essas pessoas que foram levadas de rodo para as penitenciárias de Brasília sem provas de culpa.  

A volta para casa, mesmo que seja com a tornozeleira, é uma conquista para quem conseguiu sobreviver às injustiças. Mas junto eles levam a atmosfera do medo, da insegurança e do desamparo jurídico declarado em alto e bom som pelos seus advogados: não há nada que se possa fazer. Tudo está nas mãos do ministro Alexandre de Moraes. A voz desses patriotas, numa conversa, sai muito fraca e, invariavelmente, choram ou trancam o choro (eu sinto). O olhar eu não vejo, pois estou muito longe deles, mas os imagino cabisbaixos.

MANTA VIRA TERÇO

Alguns patriotas levam para casa objetos muito peculiares, como foi o caso das patriotas presas numa ala que um dia foi o berçário do presídio Colmeia. De uma velha manta infantil encontrada num canto, as presas fizeram pequenos terços de cordão para rezarem, após desfiar a peça. Com a linha, elas também fizeram marcadores de objetos para identificar os seus poucos pertences, já que todos são na cor branca, conforme o padrão da penitenciária.

Um outro patriota, além das muitas histórias de angústias para contar em casa, levou um baralho foi feito com as caixinhas de achocolatado que eles recebiam para o café da manhã. Amassadas e com naipe desenhado com caneta esferográfica, as cartas ajudaram a distrair, a fazer o tempo passar mais rápido durante a privação total de liberdade.

“Nós fizemos um baralho com todos os achocolatados que a gente pegava pela manhã antes de ir para o banho de sol”, me conta um preso.

Outro guardou um pequeno trapo velho com o qual ele filtrava a água que saia da torneira. Não tinha outra água para beber e era tão suja que ele colocava o trapo na boca da torneira para amenizar a situação. Durante os meses preso foi a água disponível.

18 PESSOAS EM 18 METROS QUADRADOS

Um conta que esteve aglomerado com outras 17 pessoas, todas do movimento verde e amarelo, num espaço de 3m x 6m. Não tinha beliche para todos e o único vaso sanitário ficava grudado num dos beliches, junto a uma pia e um chuveiro. Com o tempo, o ministro Alexandre de Moraes concedeu liberdade provisória para alguns e ficaram 11 pessoas. Ainda assim, o espaço era pequeno, alguns dormiram no chão entre os beliches e um em frente à porta.

Uma única torneira servia para todos se lavarem, tomar água e lavar as suas roupas. Quando o vaso sanitário entupia, um dos patriotas colocava um saco plástico na mão e fazia pressão para desentupir (essa técnica foi usada tanto no Colmeia quanto no Papuda). Os varais foram feitos com canudinhos de achocolatados, era onde penduravam as poucas peças de roupas que lavavam.

A cela era vazada em dois lados da parede, então quando chovia entrava água, deixando o ambiente úmido e insalubre. Contam que iam para o banho de sol de cuecas, com chinelos nas mãos. Tinham que ficar sentados com a cabeça entre os joelhos até chegarem todos os detentos da ala. 

Numa das celas tinha um idoso de 72 anos e um outro era autista. O comportamento desse último irritava os carcereiros, tanto que um deles chegou a colocar as mãos no peito dele e o empurrar. Após a visita do senador Magnus Malta ao presídio, esse fato foi relatado e, no dia seguinte, o rapaz autista foi liberado.

ATÉ OS CARCEREIROS SE EMOCIONAM

Alguns carcereiros se emocionam com a situação dos patriotas. É um relato vem dos dois presídios. Alguns chegam a derramar lágrimas e dizem que são vigiados pelo Ministério Público e a orientação é de não oferecer regalias aos presos políticos, que qualquer cordialidade é proibida. Então, é comum alguns pedirem desculpas por tudo que não podem fazer para reduzir a dor dos patriotas. Afirmam saber que não são bandidos, que todos são trabalhadores. Mas isso não é regra entre os carcereiros, muito menos entre os presos comuns, que são os responsáveis por entregar os kits aos patriotas. Estes somem com as bolachas entregues pelos advogados aos patriotas. Não há para quem reclamar.

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