Por Ana Maria Cemin – Jornalista – escrito em 17.03.2023 e publicado em 27.06.2024
Como você se sentiria de fosse separado de seu cônjuge no dia 10 de janeiro, vendo ele ser levado para o presídio Papuda e, você, logo em seguida para o presídio Colmeia? Como você se sentiria se saísse do presídio Colmeia no dia 20.01.2023, mas o seu marido ficasse preso até dia 17.03.2023, sem nenhum contato visual, sem poder falar ao telefone, com raras notícias chegando e exclusivamente pelo seu advogado?
É essa história que quero contar para vocês. Um casal, duas pessoas comuns, como eu e você, que vive no Brasil e têm direito a ter opinião e a manifestar o seu pensamento e viver seu credo, sem censura, sob a garantia da Constituição Federal. A imagem desta matéria é do banco de fotos Freepik.
O nome da minha entrevistada eu não vou contar para vocês, nem de qual estado ela é. Respeito o sigilo da identidade, pois quem me conta a sua história de amor à Pátria e a sua experiência em 8 de janeiro na nossa capital federal merece todo o meu respeito e gratidão. Porém, quero compensar a ausência de um nome com o relato do ambiente onde a minha entrevistada nasceu e cresceu: ela é filha de pai e mãe com deficiência visual, história de amor iniciada num Instituto de Cegos onde estudaram desde os 6 anos (mãe) e 13 anos (pai). Mesmo sem enxergar, os dois tornaram-se professores, lecionaram várias matérias como Língua Portuguesa e Ensino Religioso, casaram e constituíram família.
A minha entrevistada descreve o seu lar amoroso e o amor pelos pais falecidos e pelo seu único irmão, mas vai além na história da família, contando que eram abençoados por uma vizinha que os socorria em situações difíceis, quando os pais cegos não conseguiam medicar com gotinhas os filhos pequenos que adoeciam, ou mesmo não conseguiam identificar os bichinhos que apareciam na casa e que as crianças descreviam para os pais. Então, a mãe chamava a vizinha que vinha, socorria e identificava se o bicho era ou não inofensivo.
É só um exemplo para mostrar que quem nasce num berço assim, de amor e de superação, tem dentro de si uma linda semente. E a patriota faz questão de contar e eu quase enxergo os pais cegos, nos últimos anos de suas vidas, ela, a mãe, fazendo aviãozinho para alimentar o pai doente, que perdeu a fala num AVC. Mas sem enxergar, direcionava a colher ao olho ao invés da boca. E ele sem poder falar… A minha entrevistada via essa cena e percebia o quanto de amor estava envolvido naquela atitude, eram os seus pais, seus modelos. E vocês, mesmo não sabendo o nome da protagonista da história que vem a seguir, podem desenhar o perfil de uma filha educada por um casal assim.
Pois bem, ela também construiu uma linda história: se casou há 20 anos com um homem que é o pai de seus dois filhos e que ela sonhava poder voltar a abraçar desde o dia 10 de janeiro, quando o ministro Alexandre de Moraes determinou que todas as pessoas que estavam no QG de Brasília deveriam ser levadas para o Ginásio da Polícia Federal. Foi lá que ela o viu pela última vez. Nunca mais ouviu sua voz, nem pode dizer quanto o amava e que as crianças estavam com saudades. Católica, ela rezou, fez penitências e esperou que ele estivesse bem, pelo menos bem melhor do que ela que enfrentou depressão ao sair do presídio e se tratar com psicólogo e psiquiatra.
Quanto à tornozeleira, ela não tem vergonha. Ela sabe que nada fez para merecer a privação da liberdade e não tem nada de errado em defender as suas ideias, seu amor ao Brasil e reivindicar por um governo correto, que atue com transparência. Mesmo assim, ela não consegue voltar ao trabalho, onde esteve empregada por quase 30 anos. Seu único emprego na vida, tal a sua constância de propósitos.
FOMOS FELIZES NOS 70 DIAS DE MANIFESTAÇÃO
“Meu marido e eu frequentamos o QG da nossa cidade durante 70 dias, exercendo o nosso papel de patriota, inclusive fomos duas vezes para o QG de Brasília com o pessoal da nossa cidade. A terceira e última foi em 7 de janeiro, quando fomos participar da manifestação, inclusive todos os custos foram pagos pelo pessoal da cidade. Chegamos às 5 horas do dia 8 em Brasília e o nosso motorista não conseguiu estacionar, como das outras vezes, dentro do QG. Ficou dando voltas e nos deixou a 1 km e foi procurar estacionamento. Chegamos a pé no QG e lá tivemos uma recepção tão linda, bem diferente das outras vezes. As pessoas acampadas saíram das suas barracas para nos receber com palmas, com palavras de boas-vindas. Nós gravamos vídeos mostrando essa alegria, com pessoas batendo palmas. Procuramos o local onde o pessoal da nossa cidade mantinha um acampamento, com banheiro químico, local para lanchar, mas já não tinha mais. Então, encontramos uma outra área para colocar as nossas barracas. O nosso ônibus fretado nos esperaria até terça-feira, quando voltaríamos todos para o nosso estado. Depois da barraca montada pelo meu marido, nós tomamos o nosso café da manhã.
ESSE É O MOVIMENTO MAIS LINDO. EXEMPLO PARA O MUNDO
O pessoal do som chamou a todos para ir à Praça dos Três Poderes no início da tarde. Nos organizamos com uma cobertinha e alguma comida para ir até lá e voltar somente na manhã do dia 9. Ficaríamos sentados na grama, orando e cantando o hino. A caminhada foi de 8 km e no percurso víamos cadeirantes, idosos, famílias inteiras. Era lindo de ver aquele tapete verde e amarelo crescendo. Emocionante! Se a imprensa tivesse noticiado, mostrado as imagens, o mundo interno se arrepiaria com o nosso movimento. Rodaria o mundo, de tão lindo que era!
Também era muito visível a alegria daquelas pessoas, a confiança de que todos estávamos fazendo algo bom. Enfim, chegamos e passamos por uma revista. Um cordão de policiais vestidos de preto nos revistou e me senti protegida por fazerem aquilo. Uma policial gentil perguntou se eu tinha algum material cortante, desodorante aerossol, pau de bandeira. Eu falei que não. Ela pediu para olhar a minha mochila e abri para ela revistar.
Fomos entrando com o grupo da nossa cidade e vimos que tinha um pessoal na rampa e ficamos pensando como que conseguiram chegar tão rápido. Nós, muito curiosos, nos aproximamos do prédio, descemos a rampa e eu vi uma janela quebrada. Era bem grande. Tinha um policial ali na porta. Eu me agachei e entrei, de curiosa mesmo, por aquele vidro quebrado. Logo vi que internamente tudo estava esbranquiçado e meus olhos começaram a arder por causa do gás. Eu perguntei para um policial se eu poderia ir ao banheiro e ele disse que sim. Tinha fila para ir ao banheiro, tanto para homens quanto para mulheres.
Isso era por volta de 16h30 da tarde. Só de caminhada do QG até a praça dá cerca de 1 hora e nós saímos em marcha organizada de lá às 14 horas. Um detalhe curioso é que ao sair dos banheiros percebemos a polícia com escudos de choque e não demorou e esses mesmos policiais começarem a largar bombas. Era um ataque de bombas! Meu marido disse para sairmos logo dali e fomos para frente do Congresso. Ficamos ali parados um pouco sem saber o que estava acontecendo. E começaram a jogar mais bombas e não sabíamos de onde vinham. Descemos um degrau alto, inclusive o meu esposo ajudou duas senhorinhas a descerem. Optamos por não descer pela rampa. E a polícia estava nos empurrando cada vez mais até chegarmos a esse espaço, uma espécie de varanda, de onde deixamos o prédio. Escalamos o gramado na lateral e ficamos no alto.
COVARDES, COVARDES, COVARDES!
Só enxergávamos bombas caindo, jogadas por quem deveria proteger o povo, e não compreendíamos a razão daquilo. Mostrávamos a bandeira do Brasil aos policiais, pessoas se ajoelhavam, outras se deitavam no chão. Vimos policiais do exército a cavalo, tanques com água que era jogada contra os manifestantes os lançando ao chão pela pressão. Uma cena de horror. Uma caminhonete estava caída no lago. Vi um rapaz, que penso ser um infiltrado, com um canivete furando os pneus.
Tudo errado. Os nossos planos nunca foram de depredar. Então vi um rapaz com o rosto coberto com uma camiseta, só os olhos apareciam, com um isqueiro nas mãos para queimar as bandeiras hasteadas. Tinha um outro sujeito ajudando-o a subir no mastro, mas conseguimos impedir. Ele ficou nervoso com a gente. Nós evitamos muitas coisas ruins de acontecer.
A polícia nos deixou como baratas tontas em frente ao Congresso, jogando bombas de um lado e então corríamos para o outro. Logo jogavam para o outro lado, e nós invertíamos a direção para fugir do ataque. O gás ardia muito em nossos olhos, o barulho atordoava. Os helicópteros voavam muito baixo, dando rasantes. Nos vimos no meio de uma guerra, meu esposo dizia para irmos embora, que tudo estava muito perigoso e começamos a subir o caminho de volta ao QG.
Ao voltarmos para o QG, observamos um cordão de policiais e nessa hora os patriotas demonstraram toda a sua indignação contra eles. Eu fui uma das que usou palavras hostis, porque não entendíamos como podiam fazer aquilo conosco. Estávamos sem armas, não éramos bandidos, nossas manifestações sempre foram pacíficas. Chamamos eles de covardes por várias vezes. Eles ouviram calados o nosso desabafo. Dizíamos para olharem para as famílias inteiras que estavam ali, os idosos, os vendedores de cachorro-quente e pipocas. Tínhamos que ajudar a todos, ser solidários, nos protegendo para polícia, que era quem devia nos proteger daquele caos. Eles jogavam bombas, e nós ajudávamos aqueles que precisavam de socorro, a carregar algo que caiu no chão. Eu voltei para o QG ao lado de um senhor que teve os seus óculos quebrados por uma bala de borracha. Fico imaginando se pegasse em seus olhos! Ele estava sangrando.
DEVIA TER OUVIDO MEU MARIDO
No meio daquilo tudo lembrei do comentário do meu marido de que talvez não fosse uma boa ideia ir a Brasília, porque o governo do PT havia assumido e que não era mais a mesma forma de tratar as pessoas. Caminhava e lembrava de suas palavras e de como insisti para ir à manifestação.
Por nós passavam carro pretos com sirenes ligadas em alto volume, piscando. Muitos veículos. Ao chegarmos nas proximidades do QG optamos por uma entrada secundária, pois a principal estava com muitos policiais. Fomos por um parque, com um caminho de cimento e várias árvores, e encontramos policiais do exército informando por onde deveríamos seguir. Diziam para sair da mata e ir por onde indicavam. Fomos até a nossa barraca, desmontamos e guardamos os nossos pertences nas mochilas. Queríamos sair o quanto antes dali.
Ligamos para o nosso ônibus e o motorista contou que o ministro Alexandre de Moraes ordenou que todas as chaves dos ônibus fossem recolhidas e ele conseguiu sair de Brasília. Disse que nos aguardaria numa cidadezinha próxima e que tentássemos chegar de UBER ou ônibus de rodoviária. Isso era por volta de 19 horas do dia 8. Tentamos sair e vimos que de um lado tinha o exército fazendo barreira e do outro tinha a polícia federal. Sei que algumas pessoas conseguiram sair durante a noite, mas não foi o nosso caso. Na nossa cabeça não passava a ideia do terror que viria dali para frente. Pensamos em dormir no QG e cedo voltar para o nosso estado. Ficamos acordados a noite toda, com o pessoal conversando a respeito dos vídeos que foram transmitidos pelas mídias sobre as depredações dos prédios públicos. Só então soubemos alguma coisa sobre os fatos e ficamos todos horrorizados.
Cedo apareceu um rapaz na nossa barraca, dizendo que era do exército. Se identificou como militar com o celular e nos disse que teríamos uma hora para sair. Não demorou para usarem o microfone para orientar que todos entrassem em ônibus. Detalhe: às 19 horas do dia anterior, a polícia estava ao redor do QG, mas os helicópteros não sobrevoavam o espaço aéreo. Porém, ao amanhecer eles sobrevoaram o QG, acima de nós, fazendo voltar a triste lembrança do dia anterior. Começamos a tremer.
A polícia estava lá nas ruas, de preto, com seus escudos. Pensávamos estar protegidos pelo exército, mas começamos a entender que talvez iríamos todos presos. Nós ficamos resistentes de entrar nos ônibus, ainda pensamos em sair a pé, fomos ingênuos, inocentes. Os policiais do exército reforçaram que o único meio de sair era nos ônibus que eles ofereciam. Um oficial se aproximou e disse para ficarmos tranquilos, pois apenas queriam nos entrevistar e depois nos deixariam numa rodoviária para voltarmos para casa. Não conseguíamos confiar nas suas palavras e ficamos num dos últimos grupos a entrar nos ônibus, e foi quando vimos o exército invadir o QG e desmontar as barracas. Muita gente deixou tudo para trás: barracas, colchões, pertences, compressores, fogão. Tudo! Só queriam voltar para seus lares. Queriam sair daquele pesadelo. A cena final do QG de Brasília me fez lembrar do holocausto. Me senti dentro de um daqueles filmes, em que pessoas são tiradas de seus lugares, cidades ficam abandonadas e aquele silêncio ensurdecedor toma conta.
Nos ônibus, nos levaram por horas para rodar pela cidade. Pela janela, vi pessoas dentro de carros fazendo sinal “L” ou sinal indicando “cadeia”. Alguns cerravam os punhos. Desfilaram conosco até chegarmos na polícia militar. Homens e mulheres precisavam fazer xixi e foi num terreno baldio que nos socorremos. Pensei até que aquele era o momento em que se poderia fugir daquilo tudo, ninguém iria atrás de nós. Só que todos ali não deviam nada para a polícia e sua única intenção era esclarecer os fatos. Iríamos para a entrevista e tudo ficaria bem. Nada devemos à Justiça. Os ônibus voltaram a rodar.
RUMO AO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Ao descermos dos ônibus no Ginásio da Polícia Federal, logo fomos abordados por policiais com cães farejadores, havia uma fila de policiais formando uma espécie de barreira e fomos todos revistados. Me senti novamente dentro de um filme ou num pesadelo, com aquelas pessoas abrindo as malas, mochilas e bolsas das pessoas. Entramos no ginásio e estava lotado. Colocamos nosso colchão num corredor e procuramos banheiro, água, o que precisaríamos para sobreviver ali. As horas foram passando e ninguém falava nada.
Às 3 horas da tarde, os policiais fizeram uma vaquinha e nos ofereceram um almoço. Na fila, foram priorizadas pessoas com diabetes, pressão alta ou com comorbidades. Os demais aguardavam a sua vez. Pudemos carregar celulares e avisar os nossos familiares, até porque eles viram pela televisão os ônibus dos patriotas rodando por Brasília e precisávamos tranquilizá-los. Havia fila para carregar os celulares e o medo, o desespero e o choro eram visíveis nos rostos dos patriotas.
Ainda na tarde de segunda-feira, dia 10, começaram a chegar advogados, foi então que entendemos que deveríamos procurar um para nos ajudar na entrevista que fariam conosco. Como sou de outro estado, liguei para uma amiga de Brasília, a Lu, meu anjo da guarda, para buscar uma recomendação de um profissional de Direito. Foi então que conhecemos o advogado que até hoje nos atende. A fila para as “entrevistas” priorizava pessoas entre 70 e 80 anos, então como eu e meu marido estamos na faixa dos 40 nós entendemos que deveríamos esperar o dia seguinte, porque eram dois milhares de pessoas. Eu coloquei meu celular para despertar às 3 horas da madrugada e fui para fila. Como poucas pessoas estavam ali, o nosso atendimento ocorreu. Um dos nossos conhecidos passou por uma sala e ouviu um policial conversando que o ministro Moraes tinha determinado que, a partir daquele momento, nenhum patriota mais deveria sair livre do Ginásio. Ele falou apavorado e aquilo tudo me deixou assustada. Isso era por volta das 4 horas da madrugada e às 5h30 fui levada para uma sala com duas mulheres, que me revistaram e, também, as minhas coisas. Depois fui para outra sala, bateram uma foto minha e foi dada a minha voz de prisão. Eu perguntei para a policial o que eu tinha feito para ser presa e ela respondeu que era uma determinação do ministro Alexandre de Moraes. E disse que dali eu iria para o presídio. Quando ouvi a palavra presídio, eu me desesperei. Logo me vi em meio de criminosas, todas petistas, pensei que morreria no presídio, que seria massacrada. Nesse momento, a policial disse que eu teria direito a uma ligação e, como era madrugada, gravei uma mensagem para meu filho e sogra contando sobre a situação e pedi para que conversassem com o advogado. A partir daí, entreguei meu celular, ela colocou num envelope pardo. Nunca mais devolveram.
Quem estava nessa situação foi levado para uma espécie de auditório, homens de um lado, mulheres do outro. Ficamos horas ali. Se sentíamos necessidade de ir ao banheiro, entrávamos numa fila e a polícia nos levava. O espaço foi enchendo aos poucos até ficar lotado. Lembro que assinei uma nota de culpa, mas eu não considero que aquilo represente uma autocondenação. Eu estou ciente que não cometi esses crimes citados, como terrorismo, abolição do estado por golpe, associação criminosa, incitação ao crime e algo mais. Assinei que eu estava ciente das acusações, mas não que eu tenha concordado com aquilo.
Estávamos com fome, e uma patriota, a Mariana, tomava a frente pedindo para as pessoas que ainda tinham bolachas que compartilhassem com os outros. Ela foi organizando e eu gosto de enaltecer essa atitude, sua inteligência e a capacidade de liderar as pessoas, mesmo em situação de crise. Por volta das 14 horas do dia 10 recebemos o almoço, completamente diferente daquele servido no Ginásio. Creio que já era do presídio, porque era uma carne de soja, uma pelota enorme que cheirava muito mal e nem o arroz dava para comer. Foi o prenúncio do que comeríamos dali pela frente.
MINHA DOR: DESPEDIDA SEM ABRAÇO
O meu marido foi levado no primeiro ônibus do presídio Papuda, por volta das 5 horas da tarde. Os homens formaram fila e foram levados. Eu me arrependo muito por não ter pedido ao policial para dar um abraço nele. Eu só consegui olhar para o rosto do meu esposo, que estava muito sério, compenetrado. Eu lembrei da preocupação dele com os nossos filhos, em momento algum no Ginásio ele pensou no trabalho, na empresa dele. Sentia a tristeza profunda pela separação da família.
Eu cheguei no presídio às 6 horas da tarde, já estava escurecendo. O ônibus é como aqueles que a gente vê nos filmes americanos: banco e uma grade, outro banco e outra grade. Chegando lá, colocaram a gente num carro que eu nunca mais quero andar. Uma espécie de furgão, todo fechado. Você se senta no carro olhando para frente e do outro lado ficam mais 6 presas, com uma placa de ferro separando e um corrimão onde colocam as algemas, mas nós não usávamos algemas. Senti que morreria naquele furgão, eu tenho fobia. Quando fecharam a porta, era como estar num caixão, tal a escuridão. Uma amiga segurava a minha mão, porque viu a minha situação crítica.
APRENDENDO A SER PRESIDIÁRIA
Chegamos ao presídio, recolheram as nossas malas, dinheiro, alianças, brincos, cartão, identidades etc. Na sequência, fomos para outra sala e nos pediram para tirar toda a roupa. Eu estava com sutiã e calcinha escuras e tive que deixar ali mesmo as duas peças, porque dentro do presídio só aceitam peças brancas de roupa, íntimas ou não. Isso era terça-feira e somente no domingo voltei a vestir calcinha e sutiã. O que tinha a partir daí era uma camiseta, calção até o joelho e chinelo brancos. Na sequência fui levada para uma máquina de Raio X enorme, que a gente passa por ela com uma esteira. Depois disso, fui orientada a sentar no chão frio, com a cabeça baixa, com as mãos para trás, até que todo grupo de mulheres ficasse pronto para a próxima fase.
Nos levaram para a nossa cela, sempre conduzidas com as mãos para trás e orientadas a não olhar para elas, nem ficar muito próximas, nem muito longe. Quando passamos pelas celas das detentas, a ficha caiu. As presidiárias gritavam aqui é Lula, aqui é Lula. Só fiquei imaginando se colocassem a nós, patriotas, dentro das celas com aquelas mulheres. Seria o nosso fim.
Chegamos a uma cela com uma porta de ferro muito grande, com uma pequena abertura. Dois passos depois da porta tinha uma grade e logo chegamos ao local onde ficaríamos: um berçário. O primeiro ambiente era uma sala com um banheiro com dois vasos sanitários sem descarga, ou seja, cada vez que era usado você tinha que encher um recipiente com água e jogar ali. Tinha também um chuveiro sem box e três tanques pequenos para lavar roupas. Havia, ainda, um banco de cimento do lado de uma falsa janela, por onde entrava um pouco de ar por ser vazada. Na sequência, tinha quatro quartos com beliches. Só que todos já estavam lotados. Nós fomos acomodadas na sala, mas não cabiam 30 colchões para as 30 presas, então tivemos que dividir os colchões, Mary e eu compartilhamos um. Sem lençóis, sem travesseiros. Nos ajeitamos.
Logo fizeram teste de covid em todas nós e ofereceram teste de gravidez. Tudo isso na noite da chegada. Trouxeram um kit presa, composto por sabonete líquido, xampu, condicionador, absorvente, creme antitranspirante, sabão em pó, escova e pasta de dentes. Cada um tinha o seu e colocava aos pés, onde dormia. Não tinha armário, nem espaço.
Serviram a janta numa marmita e informaram que não tinha colher. A saída era utilizar a tampa da marmita. Junto já traziam o café da manhã para o dia seguinte: dois pãezinhos e um achocolatado em pó. A janta era horrível, mas se fossemos comer o pão e tomar o achocolatado, a fome seria grande até o meio-dia. Aprendemos rápido a comer o mínimo daquela marmita para sobreviver.
105 mulheres juntas não fazem silêncio
Fiquei onze dias no presídio e a gente teve que aprender a ser presidiária. Levamos muito ferro das carcereiras, não no sentido físico, mas muitos gritos e pressão psicológica. Éramos 105 mulheres desesperadas, trancadas e as carcereiras queriam silêncio. Era uma rigidez de cadeia! Só que quando abriam a porta todas falavam ao mesmo tempo, querendo o seu remédio e outras situações mais.
Duas vezes ao dia tinha a conferência das presas. A carcereira falava o primeiro nome e você completava o resto, então ficava de joelho até chamar todas. Se alguma respondesse “presente” a carcereira começava tudo novamente. E você de joelho. Assim funciona a pressão psicológica. Tinha também as que mandavam ir para o corredor, mas sem direito a ir ao banheiro ou beber água até acabar a conferência. Aprendemos a nos comportar como elas mandavam, a fazer silêncio.
Eu fiquei quatro dias sem tomar banho, sempre na esperança de ir para casa logo, tomar banho num lugar melhor. A gente só ficava sentada ou deitada, era o que dava, então não suava muito. Também fiquei oito dias sem evacuar, o que estava deixando as patriotas bem preocupadas comigo. Mas comecei a caminhar bastante na hora do sol e veio mamão. Descobri que o problema era que ao sentar-me no vaso logo aparecia alguém apurada. Então uma amiga ficou do lado de fora para que eu tivesse tranquilidade para usar o vaso. Lembre: eram apenas dois vasos para 105 mulheres. Assim como eu tinha esse problema, uma outra manifestante tinha problema de tomar banho sem porta, então a gente criava uma barreira para que ela se sentisse mais tranquila ao utilizar o chuveiro. Um detalhe: não tínhamos toalha para nos secar. Um problema difícil para resolver quando não se tem peças de roupas para trocar.
Quando a gente ganhou calcinhas e sutiãs, lavávamos e pendurávamos nas grades. Mas antes disso, quando tive audiência com o juiz, fiz questão de destacar o meu constrangimento por estar diante dele sem calcinha e sem sutiã, desfilando pelo presídio apenas com uma camiseta e um calção de presa.
E para lavar a roupa a situação era complicada também. Ou eu a vestia molhada ou eu me enrolava nua no cobertor que recebi para dormir, esperando a roupa secar. Porém, se a carcereira abrisse a porta e me visse nua a situação complicaria para mim. Aprendi a lavar a minha roupa a noite, a dormir nua e vestir ao acordar. Com o passar dos dias conseguimos comprar um kit de presa mais completo. Mas durante todo o tempo falta de tudo e nós fomos ajudando umas as outras, o que foi uma experiência muito linda.
Essas mulheres que conheci são maravilhosas: empresárias, dona de fábricas, operadoras de colheitadeiras etc. A minha a amiga Lê, outro anjo da guarda, teve a ideia de desfiar uma mantinha antiga de bebê que achamos naquele local, e fazer terços para rezarmos. Ela fez para quem era católica ali no grupo. A gente rezava juntas. Aprendemos a fazer com ela marcadores de nossos objetos, fazendo fitinhas com aquele fio. Colocamos nos chinelos, porque todos eram iguais e deixávamos todos juntos. Usamos também para identificar nossas escovas de dentes e outros pertences. Foi uma ótima ideia!
LEVEI UM CHOQUE
Depois de levada ao presídio, nunca pensei no tempo de permanência ali dentro até que uma carcereira nos xingou afirmando que tinha ouvido falar que alguém estava secando o corpo, após o banho, com absorvente. Disse ainda que era para economizarmos porque o papel higiênico e os absorventes deveriam durar um mês. Como? Vou ficar um mês aqui dentro? Simplesmente fiquei chocada com aquela informação. Chamo esse como um dos três momentos de tortura que passei na prisão.
O outro momento de tortura foi quando a carcereira mandou a gente fazer uma fila para pegar o nome dos estados da federação em que morávamos. Alguém comentou que aquela organização era para nos mandar embora para os presídios dos nossos estados, dito pelo seu próprio advogado. Entrei em desespero, porque se isso acontecesse indicaria que iríamos dividir celas com criminosas. Era muita pressão psicológica na minha cabeça. Eu preferia ficar ali com as patriotas, pessoas como eu, que nunca cometeram crime, corretas, de boa formação.
O terceiro momento foi quando a carcereira pediu para que colocássemos num papel o nome das pessoas que gostaríamos de receber no presídio. Coloquei o nome dos meus filhos, da minha sogra. Aquilo me trouxe uma tristeza muito grande, foi bem difícil me imaginar recebendo as pessoas que amo numa penitenciária.
ADVOGADA ISOLADA E PASTORA COM APNÉIA
Na nossa cela tinha uma advogada que não declarara fazer parte da Ordem dos Advogados do Brasil. Num dos dias, a carcereira entrou na cela e disse “advogada fulana de tal, vem comigo”. E lá foi ela. Na nossa imaginação, ela tinha ido para um lugar melhor ou talvez tivesse sido liberada. Só que numa das idas à enfermaria, uma das patriotas que estava com pressão alta encontrou com ela e soube que ela estava numa cela úmida, sozinha, com um chuveiro que era um cano e tinha uma perereca no local. Morri de pena dela passar por tudo isso sozinha, a dor de não ter com quem conversar.
Uma outra situação que me chamou a atenção é de uma senhora que mora na Suíça e veio em visita à filha no Brasil. Ela estava na nossa cela por ter participado da manifestação do dia 8 de janeiro. Como ela sofre de apneia, ela tinha um aparelho para dormir. Ela é pastora e era a mais bem vestida do nosso grupo, porque como ela vestia branco naquele dia em que fomos presas, e branco é a cor do presídio, pode ficar com as suas roupas. Se destacava por estar elegante.
“LIVRE” PARA VOLTAR A MINHA CASA
Depois de 11 dias no presídio, recebi a notícia de que sairia. Na tarde de 19 de janeiro, 14 mulheres saíram e, no dia 20 de janeiro, eu e mais 10 saímos. Foi um momento de muita alegria, passei a noite toda acordada, olhando para aquelas grades com as nossas roupas penduradas para secar. Senti vergonha de estar feliz. Olhei para os rostos das minhas amigas e pensava “vai ter mais uma lista de pessoas a serem soltas logo”. Eu não me achava melhor que elas para sair.
Lembrei até mesmo das nossas conquistas lá dentro. As presidiárias trabalham no presídio e eram elas que nos serviam as refeições. Elas que passavam a nossa comida pelas grades. Aos poucos foram se afeiçoando a nós. Falavam, às vezes, que nós não merecíamos estar lá. Inclusive diziam que aquela comida ruim não eram elas que faziam, que elas fariam boas comidas para nós, tentando justificar aquela comida horrível que nos entregavam. Quando passávamos pelas presidiárias para ir até o nosso banho de sol, elas nos abanavam. Tenho certeza que levamos para elas um pouco de amor, de solidariedade. Um pouco de Deus. Lá no pátio tem um barzinho e quem tem dinheiro pode pegar alguma coisa para comer no valor de até R$ 50,00 a cada 15 dias, como nos contaram. Tem até pizza, doces e outras coisas gostosas. As detentas que trabalham no bar falaram que nos escutavam cantar. Os nossos cânticos de louvores ecoavam pelo presídio e que isso fazia bem para elas.
Na saída ficou tanta saudade daquelas mulheres maravilhosas. Tinha uma senhorinha linda que mora em frente ao mar, com o marido. Eles têm uma canoa na porta da casa, que usam para pescar. Essa mulher foi chamada pelas autoridades do judiciário, na audiência de custódia, de “elemento que representa risco para a sociedade”. Ela ouviu isso. Nos contou. Então, a gente começou a apelidar essa nossa amiga de a Nossa Perigosa.
São tantas coisas que vivemos, até mesmo criamos uma bola para poder jogar na cela. Juntamos vários marmitex e alguém tinha uma meia. Não sei como ela tinha uma meia. Coisa rara! A gente jogava e se divertia na cela, ou jogava uma queimada no pátio, na hora do sol. Encontramos um dominó feito de papel, possivelmente de outras detentas que passaram por ali, e jogávamos também para nos distrair. Outra engenhosidade da nossa cela foi com as lâmpadas. É proibido apagar, então criamos capas para tapá-las com marmitex e lá ia a mulher mais alta fazer a gentileza de cobrir as lâmpadas. Isso reduzia a iluminação e criava condições para um sono melhor.
Guardarei até mesmo a lembrança de uma carcereira, que devia ser do PT, que nos colocou no pátio de joelhos, com a cabeça no sol. Nos deixou assim até completar a chegada das 105 patriotas. Detalhe: com as mãos para trás e sempre olhando para a parede. Foi uma exceção naqueles 11 dias. Ainda bem.
MEU MUNDO CAIU
A saída foi um pouco demorada. Fui até uma mesa, peguei os meus documentos, dinheiro e assinei papéis. Mudou completamente a forma de tratamento, não precisávamos ficar com as mãos para trás, os policiais nos receberam bem, nos disseram que deveríamos comemorar por estarmos livres e informaram que aquele era o momento de colocar a tornozeleira no Centro Integrado de Monitoramento Eletrônico – CIME.
Eu tinha a certeza de que o meu marido estaria me esperando no CIME. Sairíamos juntos, como entramos, para cuidar de nossos filhos e voltar para as nossas vidas. O critério deveria ser o mesmo, pois somos um casal e estávamos juntos o tempo todo. A advogada que estava me aguardando explicou que a minha prisão em flagrante foi para liberdade provisória, mas ela tinha a triste notícia que o meu marido foi de flagrante para prisão preventiva. Iria permanecer no presídio Papuda.
Era inadmissível eu ir para casa sem o meu marido!
Às 3 horas da tarde eu estava na rua e a minha roupa na mochila tinha mofado. Atravessei a rua em frente ao CIME e comprei, num camelódromo, uma roupa muito simples só para chegar em casa. Às 4 horas da manhã seguinte, dia 21 de janeiro, eu estava em casa. Com 7 kg a menos. Comi apenas o suficiente para sobreviver.
A LONGA ESPERA PELO MARIDO
Minha rotina está bem resumida antes do meu marido sair: Toda segunda-feira tinha que ir ao fórum me apresentar. Não podia ter contato com as minhas amigas de cela que saíram. Nunca consegui falar com o meu marido e as informações que chegavam eram por meio do advogado. O ministro Alexandre de Moraes complicou tanto as visitas que, mesmo virtual, você tinha que apresentar uma série de documentações e, até a comprovação da terceira dose de Covid. Sabia que o meu marido estava muito abatido, pois vi uma print de uma audiência virtual que o advogado teve com ele. Passei as madrugadas olhando se saia alguma nova informação que indicasse a soltura dele. Pedia a Deus que colocasse um anjo perto do ministro para que ele tivesse misericórdia das tantas famílias sofridas, sem que qualquer crime tenha sido cometido.
A minha liberdade está muito limitada e não faz muitos dias que troquei a tornozeleira do CIME por outra aqui do meu estado. Essa machuca o meu tornozelo, mesmo protegendo com curativo. Tive que passar novamente por Raio X, fiz aquela foto com plaquinha que vemos em filmes, e estou com medo de ser presa novamente. Tenho medo e isso atrapalha o meu emocional. Fui ao trabalho e não me senti bem, pois a sensação é de que poucas pessoas entendem o que é ser patriota. Muitos criticam e essa situação revelou quem realmente é ou não minha amiga.
A única coisa que posso dizer é que meu marido e eu não fizemos nada de errado. Quem quebrou fugiu. Se algum patriota se exaltou naquele dia, deverá pagar pelos seus atos. É assim que deve ser. Eu tenho fé e continuo sendo patriota, com orgulho. Nada mudou. Na minha tornozeleira amarrei uma fitinha que representa as cores do Brasil.”
Vi e vivi quase tudo o que está nesse relato, apenas não desci para a colmeia e não estou tornozelada mas ainda fico noites e noites sem dormir , apenas chorando e orando por todos aqueles que passaram por está situação. Passo dias sem dormir, e cada vez q ouço uma sirene ou até mesmo vejo um homem com farda de policial já não me sinto segura , e sim fico apreensiva e esperando um toco toc na minha sim TOC TOC , pq mesmo não tendo feito nada nem sequer entrei nos órgão público, de Brasília respondo processo na PF, que triste . Estávamos ali apenas nos manifestando o direito a liberdade e ganhamos uma grande corvardia de ser entregue aos lobos com pele de cordeiro, ou melhor capas de corvos.
Posso não ter mais confiança nos homens mas a minha fé em Deus permanece ; posso não ter mais liberdade de ir e vir mas a minha mente vai além dos céus vai ao encontro de Deus, posso não termas o direito de falar mas nunca vão tirar de mim o direito de adorar ao Deus que sirvo , sou e serei sempre patriota e esse direito eles não vão conseguir tirar de mim