Ana Maria Cemin – 17/11/2025
Carta de José Ricardo Fernandes Pereira, recebida em setembro. Ele está preso no presídio Álvaro de Carvalho, que fica em Lins, em São Paulo. Ao final da carta, tem o link da matéria onde narro quem é ele e sua família.
“Queríamos mostrar nossa indignação com o governo, há uma semana empossado. Mas como assim, em tão pouco tempo?! Na verdade, esse “novo governo” era o mesmo que já havia ficado 8 anos com o mesmo representante (Lula) e queria prolongar seu mandato em mais 8 anos com a sua nova representante (Dilma), que acabou ficando apenas 6 anos, pois cometeu crime fiscal.
Então, já conhecíamos muito bem as pautas defendidas por esse governo, como aborto, ideologia de gênero para nossas crianças, censura a padres e pastores mascarada como homofobia…
Na verdade, a indignação já havia começado após o término do segundo turno, em cada cidade onde as pessoas se reuniam em frente aos tiros de guerra e quartéis-generais, em praticamente todo o país. Foi uma onda nacional nunca vista antes: pessoas inconformadas com o novo governo que queria assumir.
Como a posse desse novo governo havia sido no final de semana, as pessoas queriam se manifestar contra já no próximo final de semana, no seguinte à posse. Seria muito interessante conseguir um número maior de pessoas, até maior que o público presente na posse, e isso não foi nenhuma tarefa difícil!
Já havia acontecido de juntar uma multidão em apoio ao governo anterior várias vezes na Paulista e algumas na própria capital do país, como também no último feriado da Proclamação da República, no dia 15 de novembro.
Moro em Pompéia, interior de São Paulo, e fiquei sabendo que sairia um ônibus de uma cidade próxima à minha. Tentei convidar algumas pessoas da cidade em que eu moro, mas infelizmente não deu certo de nenhum conhecido meu ir. Até pensei em desistir por esse motivo, mas fui assim mesmo, sem conhecer as pessoas com quem estava indo, como é normal isso numa excursão ainda sendo organizada por outra cidade. Enfim, fui o único da minha cidade a ir para aquele evento em Brasília.
Eu mesmo já havia participado de várias manifestações na Paulista, levando até a minha família inteira, com os meus filhos pequenos. Em Brasília, já tinha ido três vezes. Sempre foram eventos muito pacíficos, por terem pessoas com os mesmos ideais e civilizadas. Essas manifestações sempre foram acompanhadas e observadas pela Polícia Militar, com a finalidade da manutenção da ordem e até para a própria segurança dos manifestantes.
Havia várias pessoas que, além de elogiarem, agradecerem aos policiais, faziam selfie com os mesmos para registrarem esses momentos de harmonia entre o povo brasileiro.
Não posso esquecer ou deixar de comentar que até a minha própria mãe, com mais de 80 anos, participou algumas vezes na Paulista. Assim como eu via outros idosos e pessoas com carrinhos de bebê participando com seus pequenos filhos destes eventos, para se ter uma ideia da harmonia e do ambiente fraternal. Minha mãe, por exemplo, recebia vários elogios de outras pessoas por estar participando, mesmo tendo idade avançada, e ficava lisonjeada por isso.
Acho que preciso fazer uma pausa aqui, retornando um pouco no tempo, e informar que a primeira eleição que votei foi no ano de 1989. Por coincidência, também a primeira eleição após a época governada pelos militares. Desde aquele tempo, em todas as eleições presidenciais, votei no candidato “Lula”. Escutem, vou frisar bem: “todas as vezes” votei nele. Esse candidato perdeu várias vezes até ser eleito e reeleito em 2002 e 2006. Nestas em que foi eleito, também votei nele, pois acreditei no discurso do homem do povo, trabalhador, conhecedor das necessidades da população pobre e brasileira.
Mas, ao final do seu segundo mandato, quando várias pessoas e ministros do seu governo foram condenados por participarem de esquema como o mensalão, ele era questionado em várias entrevistas se sabia o que essas pessoas estavam fazendo, e ele respondia que não sabia de nada. Daí, me vi no direito de não acreditar nisso. Como é que pode pessoas tão próximas e escolhidas por ele, e ele não saber o que estavam fazendo? Foi aí que entendi que estava sendo enganado por tanto tempo e que eu não podia mais apoiar pessoas assim. A máscara caiu.
Portanto, assim como apoiei vários anos as ideias dessa pessoa, posso agora ser contra e poder me manifestar. Não é isso a democracia que está garantida na Constituição?
Voltando a Brasília, as pessoas estavam em frente ao QG e não haviam sido atendidas por nenhuma autoridade. Portanto, decidiram ir para a Praça dos Três Poderes no domingo, para tentarem falar com alguém nesse dia ou na segunda-feira. Durante a madrugada do sábado para o domingo, não parava de chegar gente de todo o Brasil. Na parte da manhã, até o horário do almoço, estimaram que havia próximo de 1.000.000 de pessoas na manifestação.
Ao acordar no domingo, fui participar da Santa Missa numa igreja ali perto do QG. Fiquei lá até às 9h30 e depois fui comer numa barraca por ali mesmo, pois imaginava que na barraca de alimentação do QG haveria muita gente na fila.
A concentração em frente ao QG começou a se deslocar para a praça depois do meio-dia. Esperei um grupo de pessoas que estavam junto a mim, que saiu próximo às 13h. A distância prevista era de 8 km e a caminhada de 2 horas.
Fomos pelo Eixo Monumental, onde a Polícia Militar reservou duas faixas para as pessoas e o restante para os veículos. Nessa ida, teve um momento que algumas pessoas começaram a gritar “infiltrado”. Foi quando um policial de moto chegou e retirou esse suspeito, a fim de evitar confusão. Próximo ao viaduto da Rodoviária, havia muitas outras pessoas, aparentemente moradores da capital, e nos deram apoio.
Logo depois da Rodoviária, havia uma barreira de policiais fazendo revistas nos manifestantes. Ninguém passava dali sem ser revistado. Até as hastes das bandeiras eram retiradas para que pudessem continuar. A caminhada continuou, e lembro que, ao passar pelos prédios ministeriais, encontramos alguns índios no nosso meio.
Chegando na praça, fomos já tratados de forma hostil pelos policiais que lá estavam. Eles atiravam nas pessoas com balas de borracha. Não podíamos ficar ali na Praça dos Três Poderes como havíamos planejado?! Era muita gente naquela confusão que havia acabado de começar. Onde estavam os policiais que até então faziam a segurança das pessoas?!
Após isso, chegou a cavalaria e partiu para cima dos manifestantes. Havia entre nós pessoas de idade e mulheres.
Caminhando e tentando fugir dessa confusão, percebi algumas pessoas subirem uma rampa e entrarem no prédio, que depois fui saber que era o Palácio do Planalto, para tentarem se abrigar e escapar de todo esse tumulto.
Dentro do prédio, notei que as cadeiras estavam reviradas e comecei, com alguns, a colocá-las em ordem. Algumas pessoas, acredito que estavam revoltadas com essa confusão e com esses policiais, começaram a quebrar as coisas, como vidros, e a jogar cadeiras lá de cima. Nesse momento, cheguei a alertar que não foi para isso que havíamos chegado até ali, e que aquilo não pertencia ao governo, mas era do povo e adquirido com dinheiro público. Muitos pararam de fazer aquilo.
Entramos em um certo momento de tranquilidade lá dentro. Pude, sentado nas cadeiras, eu e mais pessoas, descansar e respirar melhor, pois a polícia lá fora tinha jogado sobre nós bombas de gás. Estávamos sendo sufocados. Depois, estando um pouco melhor, vi pelos vidros lá fora que o cenário era de terror e guerra. Além de tudo que já havia relatado por parte da polícia, havia dois helicópteros jogando bombas e dois carros tipo caveirão, todos partindo para cima da população. Não tinha como sair dali. Tínhamos que ficar abrigados dentro do prédio.
Passado algum tempo, a tropa de choque chegou, fechou o prédio e decretou que todos estavam presos. Jogaram três bombas dentro do prédio, chegando a estremecer e ecoar. O capitão da tropa foi hostil aos extremos, xingou e deu ordem para todos deitarem no chão. Lembro que uma mulher não conseguia parar de chorar, pois estava em estado de choque. Ele deu uma rasteira nela e pisou no peito dela.
Lembro também que, na primeira audiência, onde estavam testemunhas, o responsável pelo Palácio disse que muitos ajudaram ele na ordem do prédio e outros estavam em descontrole. Mas a ordem para a tropa de choque foi prender todos, independente de se quebrou ou não. Outra irregularidade dita pelos policiais foram os helicópteros jogando bombas em civis.
Os próprios policiais que nos levaram, ainda no domingo, para a delegacia de Polícia Civil, comentavam conosco que iríamos apenas ser fichados ou ficar alguns dias detidos e depois liberados.
Já na Papuda, comentávamos entre nós quantos dias ficaríamos presos, longe de nossa família. Fiquei sete meses sem receber nenhuma visita da minha família, pois mesmo em 2023 a visita tinha que atender ao protocolo da pandemia. Fui liberado com tornozeleira para voltar para Pompéia, mas não podia sair à noite, não podia sair da cidade e não podia sair de casa nos finais de semana, nem para ir à Igreja. Só depois de certo tempo, com pedido da advogada , é que fui liberado para ir à Santa Missa.
Nesse período em que estava em casa não imaginava que fosse condenado ou se fosse pegaria uma pena baixa…Fui condenado a 14 anos! Sem quebrar nada em Brasília, pelo contrário, aconselhei os que estavam perto para não quebrarem nada.
Agora já é novembro de 2025 e estou preso há mais de 17 meses consecutivos, eu já totalizei 24 meses preso (2 anos). Perdi a formatura do meu filho mais velho e a formatura do meu filho do meio. Perdi a Primeira Comunhão da minha filha e o aniversário de 18 anos do meu filho. Minha mãe de 87 anos quebrou o braço teve complicações e precisou ser internada. Não pude acompanhar e ajudar no tratamento de saúde e, por fim, ela acabou falecendo.
Nessa condenação, fui acusado de cinco “crimes”. Dois se referem à quebra de patrimônio, sendo que não quebrei nada. É só verificar nas filmagens das câmeras dos prédios. Atualmente, qualquer lugar público possui câmeras, imagina então onde o presidente da República trabalha. É só verificar as filmagens daquele dia.
Fui acusado também de tentativa de golpe de Estado. No meu processo, assim como em todos os outros do 8 de janeiro, relatam que foi encontrado com alguma pessoa um facão, um canivete, algum material inflamável. Nenhuma arma ou tanque de guerra na rua. Então, como poderia acontecer um golpe de Estado?
Fui acusado de associação criminosa. Eu era o único da minha cidade, não conhecia ninguém. Portanto, como ser acusado dessa associação? E fui acusado também de atentar ao Estado Democrático de Direito, sendo que sempre votei desde os meus 16 anos e, durante cerca de 20 anos, trabalhei como mesário e presidente de sessão.
É muito difícil ficar preso todo esse tempo e ver que a vida da família está passando lá fora. O que me mantém são as minhas orações, as orações da minha família, amigos e pessoas desconhecidas também. Há 6 anos, estava fazendo tratamento psicológico e psiquiátrico devido ao diagnóstico de ansiedade e depressão. Aqui, pelo menos, estou sendo medicado, mas quanto ao tratamento, está parado.
Estava esquecendo de comentar que, no prédio do Palácio do Planalto, não havia nenhuma autoridade trabalhando. Então, como desejar depor ou dar um golpe de Estado?
Quando estávamos presos em Brasília, na Papuda, em torno de um mês após, recebemos a visita de vários parlamentares para saber como estávamos e disseram que, dentro de mais alguns dias, retornariam para acompanhar o nosso estado, como estávamos. Mas não houve retorno, e ficamos sabendo que o ministro Alexandre de Moraes não havia permitido.
Aqui cabe um questionamento: quem atribuiu esse poder ao ministro? Não permitir um parlamentar de entrar em um presídio federal?
Outra coisa que aconteceu no Papuda, em novembro de 23, foi o falecimento do Clesão. Ele tinha problema de coração e não estava tendo o devido tratamento. Ele deveria estar sendo tratado fora do presídio, por profissionais específicos que atendem à essa questão da saúde. Antes de morrer, ele teve em torno de 15 paradas cardíacas e foi socorrido por um médico que estava preso junto com ele. Após esse trágico evento, foram verificar no processo e a PGR já havia pedido ao ministro para que o soltasse desde setembro, dois meses antes da morte.
Nós somos julgados direto na terceira instância. Isso só deveria ocorrer no caso de parlamentares. Nossos advogados não puderam fazer nossa defesa pessoalmente — foi só por escrito, pois as audiências de julgamento foram virtuais. A OAB não fez nada diante dessas irregularidades nesses processos, e nossos advogados foram até para fora do Brasil buscar ajuda para nos defender.
Agora que autoridades dos Estados Unidos estão acusando estas irregularidades, alguns ainda dizem que o Brasil é soberano para fazer tais coisas conosco.
Lembro também que ninguém ligado aos direitos humanos ou de grupos sociais foi verificar como estávamos sendo tratados. O filósofo grego Sócrates, uma vez, estava preso e, diante de um convite de fuga, respondeu que ser preso injustamente era ruim para o Estado.
Nota:
Essa ideia aparece no diálogo Críton, escrito por Platão, onde Sócrates recusa a proposta de fuga feita por seu amigo Críton. Ele argumenta que fugir seria desrespeitar as leis de Atenas, às quais ele sempre se submeteu voluntariamente. Para Sócrates, a integridade moral e o respeito à justiça são mais importantes do que a própria vida.
Fora a questão de que estou privado de liberdade, penso que não sou o único a sofrer. Minha família também está sofrendo. Meus filhos sentem a falta do pai. Meu filho mais velho pergunta para minha esposa quando vou retornar, todos os dias. E os outros começam a perguntar: “Cadê meu pai? Cadê meu pai?”
Minha filha está tendo notas ruins, coisa que nunca tinha quando eu estava em casa, e está precisando fazer aula de reforço. Minha esposa tem pressão alta e a saúde dela não anda nada bem. Está tendo que cuidar dos três filhos sozinha, e ainda os pais dela são idosos.
Estamos em novembro, e eu estou pensando que vou ter que passar mais um Natal e final de ano longe da minha família, parentes e amigos. Várias autoridades, inclusive do governo, estão dizendo que realmente não houve golpe, e outros, até do STF, que as penas dadas às pessoas do 8 de janeiro foram exageradas.
Portanto, vejo que deveriam dar anistia para nós, dos crimes que nos acusam ou, pelo menos, que nos dessem o benefício da prisão domiciliar enquanto não resolvem a questão da anistia.”
LEIA A HISTÓRIA DESSA FAMÍLIA
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