Ana Maria Cemin – 06/11/2025
No dia 5 de novembro de 2025, às 13 horas, em audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, a advogada Dra. Kelly Maria Silva Espíndola apresentou um relatório contundente denunciando graves violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro referentes aos presos do 8 de janeiro. Dentre as histórias que leva está da jovem Geissimara Alves de Deus, de 28 anos, que só conseguiu prisão domiciliar após chegar a 38 kg. Essa e outras tragédias humanas ocorrem sem que os brasileiros prestem atenção, como se esse mal não dos afetassem. Ledo engano.
Representando mais de 30 pessoas afetadas, a Dra. Kelly solicitou à OEA:
- Medidas cautelares urgentes em favor de seus clientes;
- Abertura de procedimento de admissibilidade para reconhecimento da responsabilidade internacional do Brasil;
- Agendamento de audiência temática sobre criminalização política e judicial pós 8 de janeiro;
- Informações oficiais ao Estado brasileiro sobre o número de pessoas ainda sob tornozeleira eletrônica, o tempo médio das restrições e os casos em que houve negação do direito à prova.
A ação da Dra. Kelly marca um passo decisivo na busca por justiça internacional diante de um cenário de perseguição política, censura religiosa, bloqueio de bens e penalidades desproporcionais. A sua atuação reforça o compromisso com a defesa da dignidade, da liberdade e do devido processo legal para todos os cidadãos injustamente punidos.
Segue o assunto tratado na audiência, pela voz da Dra. Kelly:
“Excelentíssimos comissionados, representantes da Organização dos Estados Americanos (OEA), é uma honra e, sobretudo, uma responsabilidade estar aqui hoje para dar voz a brasileiros e brasileiras que foram silenciados pelo sistema de justiça do meu país.
O que trago não são apenas processos — são vidas destruídas. São mães, pais, trabalhadores, profissionais de saúde e servidores públicos que jamais praticariam atos de violência, mas que foram tratados como inimigos do Estado.
Desde o dia 08/01/2023, o Brasil assiste a um cenário que combina prisões arbitrárias, perseguições políticas, censuras religiosas e uso abusivo do processo penal. Centenas de pessoas foram presas sem mandado judicial, julgadas diretamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sem direito ao duplo grau de jurisdição, e submetidas a medidas cautelares que se transformaram em verdadeiras penas antecipadas.
Ainda hoje, muitos continuam sob tornozeleira eletrônica, impedidos de trabalhar, de frequentar igrejas, de aparecer nas redes sociais e até de sustentar suas famílias.
Permitam-me apresentar alguns casos concretos que demonstram, de forma inquestionável, o padrão de violações estruturais cometidas pelo Estado brasileiro.
1. Yette Soares Nogueira — a servidora pública transformada em ré sem culpa
A Sra. Yette é cirurgiã-dentista, servidora pública há mais de 24 anos, com reputação ilibada, endereço fixo, trabalho fixo e envolvimento comunitário, ajudando com projetos para crianças e adolescentes.
Ela foi falsamente acusada de financiar um ônibus que teria levado pessoas para Brasília no dia 8 de janeiro. Esse ônibus foi revistado pela Polícia Rodoviária Federal antes mesmo de chegar a Brasília, e nada foi encontrado — nenhuma arma.
Mesmo assim, a Sra. Yette foi apontada como passageira e financiadora do ônibus, sendo que ela não foi passageira nem financiou ônibus algum. As provas juntadas pela defesa mostram que seus dados foram usados indevidamente por um empresário, sem o seu conhecimento.
Ela foi presa preventivamente, depois colocada em prisão domiciliar, impedida de trabalhar, de frequentar sua igreja e de cuidar dos pais idosos. Teve seu salário bloqueado. Além disso, o veículo do seu marido foi apreendido e leiloado, atingindo um bem de terceiro inocente.
Hoje, vive com tornozeleira eletrônica, presa dentro de casa, sem poder receber visitas, ir à igreja ou trabalhar como sempre fez. Com depressão grave e problemas cardíacos, perdeu 23 kg.
Essa violação é direta ao direito à dignidade da pessoa humana.
2. Geissimara Alves de Deus — a solidariedade criminalizada
Geissimara é fisioterapeuta. No dia 8 de janeiro, estava no gramado e ajudou uma senhora ferida por balas de borracha. Um policial pediu que ela ajudasse a levar a senhora para dentro do Palácio. O vandalismo já havia ocorrido.
Mesmo assim, ela foi presa apenas por socorrer uma senhora ferida, acompanhada por um policial. Esse gesto de humanidade foi interpretado como participação em tentativa de golpe.
Foi condenada a 14 anos de prisão, sem imagens, sem provas de depredação e sem violência. Na prisão, sofreu agressões físicas, perdeu mais de 20 kg e hoje vive com sérias sequelas físicas e mentais.
Está em prisão domiciliar, concedida por razões humanitárias, mas impedida de trabalhar, de frequentar cultos e até de aparecer em fotos publicadas por terceiros — uma grave violação aos direitos humanos.
3. Rosângela Maria Ronconi — a fé transformada em prova de crime
Rosângela foi condenada a 12 anos de prisão apenas por estar em Brasília e aparecer em uma foto segurando um rosário e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Ela nunca praticou qualquer ato de violência. Mesmo assim, perdeu o emprego público e foi obrigada a buscar refúgio na Argentina, onde vive em condições precárias, vendendo cachorro-quente nas ruas.
Seu caso representa a criminalização da fé e a perseguição religiosa — uma violação direta ao artigo 12 da Convenção Americana dos Direitos Humanos.
4. Marisa Fernandes Cardoso — a pena que não acaba
Marisa foi condenada a um ano de prisão, convertida em pena restritiva de direitos. Porém, há mais de 2 anos e 11 meses, cumpre medidas cautelares que superam em quase três vezes o tempo da sua pena.
Ficou 3 meses encarcerada e atualmente usa tornozeleira eletrônica, com recolhimento noturno e nos finais de semana. Não há nenhuma prova material contra ela. O que existe é um símbolo da desproporcionalidade, uma pena antecipada, prolongada e injusta. Essas medidas cautelares não serão abatidas em sua pena restritiva. Marisa é professora da rede pública, ganha pouco.
5. Paulo Gabriel da Silveira e Silva — o comerciante condenado por estar presente no dia errado
Paulo Gabriel chegou a Brasília no dia 9 de janeiro pela manhã, um dia após os fatos, para vender bandeiras do Brasil. Não participou de manifestações, não entrou em prédios públicos, não depredou nada.
A defesa pediu a geolocalização do celular para provar que ele não estava em Brasília no dia do crime. O pedido foi negado, alegando ser meramente protelatório. O juiz indeferiu a produção de prova de inocência.
Paulo Gabriel não tem antecedentes, não há testemunhas, não há imagens, não há sequer um indício de participação criminosa. Mesmo assim, foi processado, exposto e punido.
Isso afronta o direito à prova, à ampla defesa e ao princípio da verdade real.
O direito à prova, à ampla defesa e ao princípio da verdade real.
6. Diego Guanabara
Diego Guanabara cumpriu integralmente o ANPP — o Acordo de Não Persecução Penal. Cumpriu todos os requisitos do acordo e, mesmo assim, na hora da homologação, o acordo foi cancelado e aditado por conta de uma foto dele no gramado da Esplanada. Hoje, ele se encontra foragido por não acreditar mais na justiça do país.
7. Casos de pessoas obrigadas a assinar o ANPP
Ana Carolina Marte Silva, Marcos José Pereira e Luciano Luiz Forti tiveram que aceitar o ANPP porque precisavam trabalhar e retirar a tornozeleira eletrônica para sobreviver. Foram obrigados a assinar um acordo e confessar um crime que não cometeram.
Marcos José Pereira é jornalista que estava fazendo cobertura das manifestações no dia 8 de janeiro, no Quartel-General de Brasília. Não depredou nada, não se associou a ninguém, não cometeu crime algum. Porém, teve que assinar uma confissão de um crime que não cometeu, apenas para poder trabalhar, já que a tornozeleira o impedia de exercer sua profissão em outros locais.
O que se vê em todos os processos é a repetição de um padrão: ausência de provas, negação do contraditório e punição antes do julgamento — tudo contrário aos direitos humanos.
Essas pessoas não tiveram direito à defesa, ao contraditório, à audiência pública, nem ao direito de responder em liberdade. Sofreram uma pena antecipada. Muitos ficaram abalados psicologicamente e materialmente.
Nesses casos houve um quadro estrutural de violações graves e reiteradas:
- Prisões arbitrárias e em massa, sem mandado e sem individualização da conduta.
- Julgamento direto pelo STF, sem duplo grau de jurisdição.
- Negação de provas e de acesso à justiça, como no caso de Paulo Gabriel.
- Abuso de medidas cautelares que se converteram em penas antecipadas.
- Bloqueio de salários e apreensão de bens de famílias, atingindo terceiros inocentes.
- Censura digital e religiosa, violando liberdades fundamentais.
- Decisões padronizadas, sem fundamentação concreta, com cerceamento de defesa e sem imparcialidade.
Tudo isso compõe um sistema de perseguição judicial e política incompatível com o Estado Democrático de Direito. E, principalmente, incompatível com os direitos humanos.
Excelência, diante das graves violações, venho solicitar:
- Medidas cautelares urgentes em favor de Yette Soares Nogueira, Geissimara Alves de Deus, Marisa Fernandes Cardoso, Paulo Gabriel da Silveira e Silva, dentre outros dos meus 33 clientes que vivem sob risco físico e psicológico.
- A abertura do procedimento de admissibilidade para reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelas violações dos artigos 5º, 7º, 8º, 13º e 25º da Convenção Americana.
- O agendamento de uma audiência temática sobre o Brasil, com o tema: “Criminalização política e judicial pós 8 de janeiro: violações estruturais dos direitos humanos”.
- Informações oficiais ao Estado brasileiro sobre: o número de pessoas ainda sob tornozeleira eletrônica, o tempo médio das restrições e oss casos em que as defesas tiveram o direito à prova negado.
Excelentíssimos comissionados, nenhuma dessas pessoas representa perigo à democracia. Elas são, na verdade, vítimas de um Estado que confundiu justiça com vingança. Foram presas sem provas, punidas antes da condenação, humilhadas publicamente e deixadas à margem dos seus direitos mais básicos.
A democracia não se protege punindo o pensamento. Ela se fortalece respeitando a lei, a dignidade e o devido processo legal.
O que pedimos hoje é simples e urgente: que essas pessoas possam viver com liberdade, fé e dignidade. Que o Brasil seja chamado a responder por essas violações perante o Sistema Interamericano. E que a OEA se torne um espaço de esperança para aqueles que não encontram justiça em seus próprios países.”
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