Ana Maria Cemin – 23/10/2025
Quem já não ouviu os integrantes do governo e do Supremo Tribunal Federal falando sobre os mais de 500 Acordos de Não Persecução Penal (ANPP) feitos pelo Ministério Público com os manifestantes de 8 de janeiro? Creio que todo mundo que está atento no que acontece no mundo já ouviu falar. Hoje, 23 de outubro, entrei em contato com a assessoria do STF para saber qual o número de acordos e quantos foram rompidos pela Procuradoria-Geral da União (PGR). A resposta foi que o STF fornece quantos acordos feitos, que são 552, mas não quantos foram rescindidos. E esse é um tema grave, porque muitas pessoas têm me procurado para relatar que foram de certa forma traídos pelo Estado Brasileiro depois de cumprido o acordo, voltando a ter processo e, pasmem, passando de dois crimes para cinco crimes. O motivo dessa matéria foi a conversa que tive hoje com a mãe da jovem gaúcha cujo caso relato a seguir.
Depois de cumprir integralmente o ANPP proposto pela PGR, Manuela Souza de Lima, 22 anos, moradora de Cerro Largo, RS, viu a sua vida novamente ser atropelada pelo Estado Brasileiro. Quem formalizou e homologou o acordo decidiu romper o compromisso e agravou a situação da estudante, agora acusando-a de crimes ainda mais graves. A justificativa? A presença de uma foto em seu celular que a mostraria na parte superior do Palácio do Planalto durante os eventos de 8 de janeiro de 2023. Na época, Manuela tinha apenas 19 anos.
Essa notícia chegou quando a jovem já havia cumprido todas as exigências do acordo: prestou 150 horas de serviços comunitários, pagou multa de R$ 5 mil, participou de curso sobre democracia, ficou proibida de usar redes sociais e usou tornozeleira eletrônica por um ano e sete meses. O Juízo da Vara Adjunta de Execuções Criminais de Cerro Largo confirmou o cumprimento do acordo em setembro de 2025. No entanto, menos de um mês depois, em 17 de outubro, a Procuradoria-Geral da República apresentou um aditamento à denúncia, incluindo novos crimes como associação criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado contra patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. No mesmo ato, solicitou a rescisão do ANPP e o retorno do processo ao trâmite regular.
A decisão surpreendeu e devastou a família, especialmente a mãe de Manuela, Hermelinda Souza de Lima, que recebeu a notícia com dor e indignação. Em depoimento emocionado, Hermelinda relatou que a filha foi convidada por uma amiga para ir a Brasília durante as férias da faculdade. Era a primeira vez que Manuela saía de casa. Já na estrada, demonstrava arrependimento e queria voltar, mas não havia como. Após os eventos, foi presa e permaneceu 13 dias na penitenciária feminina da Colmeia. Desde então, dedicou-se a cumprir todas as exigências legais, mesmo com prejuízos aos estudos e à vida pessoal.
“Ela nunca deixou nada a desejar. Pagamos tudo, ela fez tudo direitinho. E agora chega essa notícia… é terrível”, desabafou Hermelinda. A mãe teme que a filha volte ao presídio, mesmo sendo uma jovem inocente, dedicada aos estudos, que nunca namorou e sempre priorizou a educação.
A advogada Karolina Sena, que foi inicialmente responsável pela defesa de Manuela em 2023, entrou em contato com Hermelinda no dia 22 de outubro para comunicar oficialmente a nova reviravolta. Em áudio enviado à família, explicou que as autoridades encontraram imagens que, embora não mostrem Manuela praticando atos de vandalismo, indicariam sua presença em área de destruição. “Eles entenderam que ela estava concorrendo com quem quebrou”, disse a advogada. Com isso, as medidas cautelares foram restabelecidas: tornozeleira eletrônica, restrição de circulação e nova defesa diante de acusações mais graves.
Dra. Karolina também informou que o caso foi transferido do inquérito 4921 para o 4922, o que implica novo julgamento e nova estratégia jurídica. “Começa tudo de novo”, lamentou.
O caso de Manuela escancara uma atuação contraditória e punitivista do Estado brasileiro, que, mesmo após reconhecer a possibilidade de ressocialização e firmar um acordo judicial, volta atrás com base em elementos frágeis e interpretações subjetivas. A ruptura do ANPP não apenas desestabiliza juridicamente a jovem, mas também compromete a credibilidade das instituições que deveriam garantir segurança jurídica e respeito aos direitos fundamentais.
Manuela, que está prestes a se formar, agora enfrenta novamente o risco de prisão, a interrupção dos estudos e o estigma de uma acusação que se agrava sem que novas provas concretas tenham sido apresentadas. A família, abalada, busca orientação jurídica e apoio diante do que considera uma injustiça brutal.
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